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bassel

por jorge c., em 31.08.15

Querida Nasmah,

 

Que as minhas palavras não te assustem. É tudo o que desejo. Só agora consigo responder à tua mensagem em segurança. Ficámos retidos em Lens nos últimos dias e se Rasul não se tivesse mexido através da rede ainda lá estaríamos. Alterámos a rota do norte. Calais não é mais seguro. Em Itália já não passa ninguém e na Grécia há milícias organizadas pela extrema-direita que vigiam armadas os pontos possíveis para o desembarque. Assim que as novas rotas são anunciadas nas televisões e nos jornais, como se fossem atracções turísticas, a passagem inviabiliza-se. Há cerca de duas semanas, uma dessas milícias fez-se passar por uma organização de ajuda humanitária e conduziram perto de cem desgraçados para as montanhas. Morreram todos. 

Sayid e os outros já estão a salvo. Por pouco não conseguíamos. Não lhes cobrei nada, não fui capaz. Também não lhe contei da Grécia. Disse-lhe que era tudo mentira. Mas no sítio onde ficaram ninguém me conhece. 

Com estas complicações todas e com os negócios nos Balcãs, talvez a rota do Adriático seja a melhor solução. Falei com Loran. Já não o contactava desde a operação das Raparigas de Trieste. Se lhe transportar dois carregamentos para Tarifa, ele aceita fazer a costa toda com eles. "Sem precalços", garantiu-me. No fundo, garante-me é mais dinheiro. A polícia está mais cara. Os tipos que faziam a rota do leste já foram à vida. E os jornais, coitados, ainda acreditam que "o motorista ainda se encontra em fuga". Quatro camiões na mesma zona, só por mera coincidência. 

Todas as noites, querida Nasmah, quando o medo me perturba o sono, dou por mim a pensar que tudo isto é uma nobre causa, uma ajuda aos irmãos aflitos e desesperados. Mas depois, em cada lugar, lá está a tua terra prometida, essa Europa de que tanto falas e onde não habita senão a miséria do espírito, o lixo das almas, o fanatismo, a corrupção da autoridade, a ajuda só com compensação e o oportunismo dos tipos como eu, que vivem deste caos instalado. Adormeço como um moralista de mim mesmo.

Lembrei-me dos fins de tarde ao sol em Tel-Aviv, antes de Ezra aparecer nas nossas vidas. O mundo era, então, tão grande que nos banhávamos de imensidão. Agora, tudo parece um labirinto de cobaias, estreito e limitado. 

Assim que chegar ao sul volto a escrever-te. Se chegar. Não esperes nada.

 

Bassel

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passagem

por jorge c., em 28.08.15

Depois da queda, levantar de novo, agora encharcado. Os outros já lá vão, um pouco mais à frente. Ali estão. O corpo já se vai habituando a não se erguer demasiado. O que serão aqueles latidos ao longe? Alerta, sempre alerta. O pior já passou. Mais arame, menos arame, vai ficar tudo bem. Aya também ficou para trás. Queixa-se de um tornozelo. Sinto-lhe o sangue e o suor onde antes era só pele, seda e jasmim. Temos de continuar. É preciso evitar a luz. Cada vez menos invisíveis. Continuemos. Limpo-lhe o sangue e guardo o lenço. Dentro de duas horas Bassel estará à nossa espera na outra margem do rio para nos conduzir até ao nosso contacto do sul. Teremos de confiar. Os latidos regressam. Temos de confiar. Precisamos de confiar. Um homem que nos deu comida na última paragem contou-nos que, há umas semanas, apanharam uns tipos do norte que se faziam passar por voluntários de uma organização qualquer. Levaram um grupo para uma zona mais montanhosa e fizeram-nos desaparecer. Ninguém sabe deles. Bassel diz que é mentira, que inventam coisas por causa do medo, que preferem ver o nosso medo e que isso diminui o seu próprio medo. Somos lobos de matilhas diferentes. Uns mais cães do que outros. Não penses nisso agora, não te ergas demasiado, não te insurjas, é preciso continuar. Agora é uma criança a chorar. Uma vontade indomável de a esganar apodera-se de mim. Temos de sobreviver. É preciso continuar para sobreviver. Não te ergas demasiado, não penses na criança. Vai ficar tudo bem. Já falta pouco. Ainda falta tanto.

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toxicidade

por jorge c., em 28.08.15

O verão desparece pela manhã. Um nevoeiro abafado invade o quarto, a intimidade dos lençóis ainda quentes e o reflexo de um rapaz e de uma rapariga sonolentos no espelho. O cheiro do monóxido de carbono ameaça o dia. Entre a cidade e o céu, paredes de betão e um ruído exasperante de embalar, como num disco dos Massive Attack.

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Deveríamos pensar sempre em que medida olhamos para as coisas, qual a escala de relevância que damos aos objectos, aos espaços, aos hábitos ou à nossa privacidade. Um artista cria sobre a medida das coisas do mundo. O seu alcance é ou será tão maior quanto a sua originalidade. Por vezes, ultrapassa todos os limites. Certa noite, sonhei com uma cidade modernista sem ainda conhecer Charles-Edouard Jeanneret e, quando o conheci, calculei que fosse possível uma vida inteira a construir o nosso espaço e a medir a nossa intimidade. Da pintura à arquitectura, Le Corbusier desenhou um esquema para a qualidade de vida e para a relação harmoniosa do espaço íntimo e do espaço público. Ao entender estes dois princípios complementares, o arquitecto passou para um patamar mais elevado, ao qual alguns poderão chamar de arte. Este ano, o Centre Pompidou dedicou uma exposição à vida e obra de Le Corbusier. A exibição concentrava-se mais na ideia artística abstracta e na natureza dos movimentos artísticos do que na arquitectura em si mesma. Esta concepção permitia ao indivíduo comum compreender a arquitectura, mergulhando na sua génese e criando para si uma ideia para as suas próprias medidas e, talvez, para as do mundo. Sem polémicas e em perspectiva, esta foi a celebração do espírito da arte que, de resto, nos daria muito jeito por cá. 

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rede social

por jorge c., em 26.08.15

Célia. É assim o nome da mulher que, convencida da sua insubmissa sagacidade, se recusa a ir em modas. Não come sushi, não bebe gin, ou por outra, bebia-o quando não era moda e qualquer um servia - grandes tosgas nos bons tempos dessa zona que agora também está na moda. O jogging e o gourmet, então, parecem-lhe uma perfeita patetice, mas o que ainda a irrita mais são as ondas de indignação, solidariedade e evocação de figuras públicas que vão morrendo, porque só depois da sua morte se lembram delas. Estas e outras observações têm sido partilhadas na sua página pessoal, numa rede social onde mantém, mais coisa menos coisa, perto de 650 amigos, e contam neste momento com mais de 300 anuências e comentários solidários. Não obstante a sua consciente e frequente participação neste universo, Célia considera ridícula a preferência pela utilização destas ferramentas modernas em detrimento do convívio social e, apesar da sua frontalidade, honestidade, sinceridade e bonomia, reflectidas nas mais variadas citações anónimas e imagens de paz e amor, não evita por vezes mensagens subliminares aos seus colegas de trabalho que "passam o dia nisto". Ela bem os vê. Quando chega a hora de sair, vai para casa, prepara o jantar e senta-se no sofá onde permanece até se deitar, esperando a primeira insónia da noite.

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teoria minimalista

por jorge c., em 25.08.15

Não sei se é a natureza das palavras que convoca o desentendimento, se somos nós que provocamos a sua ambiguidade, conduzindo as conversas ao fracasso. Cada frase dita, um prostíbulo de palavras que já nem a semântica salva. Demasiadas palavras, longas e excessivas frases, confusas, nervosas. Do outro lado, o outro recebe-as como balas, imaginando primeiras e segundas intenções, até que a subjectividade nos separe. Para sempre. Há tantas palavras como sensibilidades. Já pouco medimos umas e outras e, avançando como quem avança pelo meio de um acidente dessas corridas de carros americanos, seguimos perdidos e desentendidos na imensidão do universo. Reparo agora no dramatismo e na gravidade ridícula das minhas palavras e desejo nunca as ter dito. 

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Num outono que me parece já algo distante, entrei num pequeno cinema de bairro para ver a Sonata de Outono. Estava particularmente lúcido apesar da chuva, da gabardine encharcada, das despesas do amor e da segurança social. Bergman em Bergman. Outono no outono. Todos os paralelismos do mundo numa pequena sala cheia de clientes de ciclos, aos círculos, de clientes de sonatas diárias, de prelúdios infinitamente tristes, de tristezas infinitamente diárias em prelúdio, aos círculos, como aquela expressão infinitamente circular de Charlotte enquanto ouve Eva a tocar um prelúdio de Chopin, essa expressão que era imensa e invasiva e que acabava por nos agoniar o peito. Quando saí não era mais lúcido. Desci a rua e entrei no carro seco apesar da chuva, da gabardine encharcada e do rosto perdido de Ingrid Bergman.

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pequenas felicidades

por jorge c., em 24.08.15

Todas as manhãs de Agosto, Nadir acorda angustiado. Talvez porque pense demasiado na felicidade, vai recordando outras manhãs menos tensas, menos angustiantes, todas elas diferentes, tons de felicidade diferentes, pequenas felicidades que juntas lembram uma única e sublime manhã. Chovia nessa manhã em que sentiu as gotas gordas da chuva na cara, por entre os pinheiros de um bosque quase irlandês. Como se agosto não fosse Agosto e fosse antes Augusto de tão divino e luculento. E o cheiro das madressilvas misturava-se com o do papel molhado e do whisky da noite excessiva. E enquanto os outros ressonavam nos quartos do casarão vetusto, eu era feliz a ouvir Elis a cantar a madrugada, entre um e outro cigarro, sem angústias, apenas alguma melancolia. Nadir pensou na feliz melancolia. Tenho pensado na feliz melancolia. Pensado na felicidade. Coisa ridícula.

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intelectualidade

por jorge c., em 12.08.15

"É evidente que o meu conceito de intelectual não se confunde com a jactância de algumas pessoas que se julgam pertencentes a uma espécie superior, a uma aristocracia que tivesse substituído a cor do sangue, ou o volume do dinheiro amealhado, pelo saber, como elemento de discriminação social. Para mim, o intelectual é o que sabe interpretar, porque o vive, o real com um pensamento mais elaborado do que a maioria das pessoas, no sentido de concorrer, à sua maneira, a um mundo outro, mais fraterno e mais justo."

Tenho pensado nesta ideia do Prof. Manuel Sérgio sempre que o tema da conversa é uma disputa entre o ser pragmático e o ser intelectual. Na verdade, hoje ninguém se quer assumir como intelectual e, ainda assim, tantos que gostariam de o ser. Sem ressentimentos. O ser pragmático não gosta do intelectual. O intelectual ou bem que é um presumido ou um tímido, com vergonha da intelectualidade, e despreza o pragmático. O pragmático devolve-lhe com a acusação de lirismo, misturando literatura com pensamento, numa demonstração inequívoca da sua falta de intelectualidade. É como se usássemos o pensamento para fins meramente utilitários, como arma de arremesso ou distintivo.

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os dias do tédio

por jorge c., em 11.08.15

Entre as três e as quatro da tarde passo a mais fastidiosa das horas do dia e com indulgência ignoro as banalidades e o ruído. Dou lugar ao tédio e à inquietação e assim se passa um pedaço sério do dia. Em casa, esperam-me os livros que são, por estes dias, as únicas férias que tenho. 

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a dança dos pássaros

por jorge c., em 10.08.15

Da minha janela de infância ainda vejo, por vezes, o rio lá ao fundo, a ponte, a luz sobre os prédios brancos, as manhãs frescas e claras ao som da Dança dos Pássaros; na televisão, os separadores da Continuidade a transmitir imagens de Lisboa ou os desenhos animados e eu a sonhar como um Tom Sawyer no séc. XX., a sair pelas ruas a correr, as roupas coloridas, o cheiro do verão, a dança dos pássaros. Comprei uns óculos de sol azuis e verdes que me fazem lembrar esses dias. Nem sei bem porquê. Mas a estética da nossa memória é algo tão íntimo que só nós conseguimos ver. Lembras-te? Claro que não te lembras. Inventei esta memória para mim, da televisão, da luz da manhã, da dança dos pássaros, da música do Vargas, dos azuis e verdes misturados na minha indumentária infantil. É um conforto. 

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nomes para uma existência tranquila

por jorge c., em 06.08.15

Estive quase para me chamar Inês mas, à última da hora, passou-lhes a iconoclastia. Não seria confortável, convenhamos. Já é difícil que chegue um tipo conviver todos os dias com o seu nome, que é um nome comum, tendo já tão pouco de próprio e distinto, e que, à partida, não carrega consigo nenhum fardo insuperável. E em matéria de nomes, admita-se, há fardos insuperáveis. Muitas vezes, são as alcunhas felizes, atribuídas pelos outros, que relançam a nossa esperança em viver com um nome que nos distinga. Outras vezes, somos nós próprios a criar um pseudónimo, como se um novo baptismo nos devolvesse a justiça de uma identidade pretendida. Aconteceu com Herberto e Gedeão. E Rómulo é um nome tão distinto e seguro. Mas por vezes olhamos para o nosso nome como se fosse um estranho, algo que não nos pertence, uma alcunha que nos atribuíram sem o nosso consentimento. É uma falsa crise de identidade. Olho-me, agora, ao espelho e repito o meu nome, tentando que a imagem reflectida e o nome combinem. Nada feito. São perfeitos desconhecidos. E se eu pudesse chamar-me outra coisa? Talvez uma letra, como em O Processo, ou uma cor como em Cães Danados. Qualquer outra coisa que me acalme esta angústia de não saber se algum dia olharei para o espelho e distinga uma identidade própria e única. Pensando bem, talvez Inês tivesse resultado.

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out of the office

por jorge c., em 03.08.15

A mensagem automática dos ausentes em agosto é clara: lamentamos, mas a vida foi adiada para setembro. Ligo e peço para falar com alguém que me possa, pelo menos, dizer se as coisas estão a andar. Nada feito. "Pois, o doutor não está, terá de esperar que ele regresse." Mas não há aí ninguém? Fico impaciente. Parece que a informação está no computador do doutor, que ele só volta em setembro porque as pessoas também têm que ir de férias - é da lei -, e que o assunto deve estar a andar, mas por agora não podem adiantar mais nada, eu que tenha paciência. A vida que tenha paciência, não há ninguém no escritório. Estão todos ali, de papo para o ar, na internet.

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definições

por jorge c., em 03.08.15

A angústia é a certeza da incerteza.

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