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manhã ocidental

por jorge c., em 30.08.16

Sombria, a guitarra de Polly Jean rasga o Agosto passado e tenta romper por Setembro dentro, sem pressa, num compasso com tanto de lânguido como de sádico. Na sua página oficial, um artista queixa-se da falta de reconhecimento pelos seus pares, pelo público e pelo cosmos. Dois jornalistas discutem o estado do setor no Facebook, invocando as razões iniciais que os levaram à profissão. Um cínico faz uma revista dos posts, deixando comentários como um pombo que larga dejetos nas praças ao longo da cidade, voltando depois à sua aborrecida realidade. Cidadãos anónimos esfregam os olhos nos transportes públicos na ressaca dos dias quentes e da água tépida. As chefias chegam depois da hora; outras já lá estão desde ontem. Pisa-se o passeio com mais convicção do que antes, com a substituição da calçada. Há buzinas e travagens bruscas. Um estafeta consulta o Whatsapp numa paragem de autocarro e o empregado do snack-bar Maré Alta acaba um Filtro enquanto arruma o resto da esplanada. Um homem discute com ele a mão na bola e um outro lê as notícias num jornal onde os jornalistas já nem discutem o estado do setor. Num quarto arrendado, uma desconhecida celebridade da cultura nacional dorme abraçada a um jovem Erasmus. A guitarra e a voz de Polly Jean estendem-se pela minha manhã ocidental.

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balada da dependência*

por jorge c., em 23.08.16

Era já tarde quando o amor se esgotou. Foi um estranho que entrou no quarto de madrugada. Trazia o cheiro azedo da cerveja bebida e entornada sobre o perfume enjoativo do vestido e a indiferença dos excessos. Poucos minutos após se deitar, a meio da minha insónia escaldante, caiu nas profundezas de um inevitável cansaço, demasiado ruidoso. Levantei-me e saí pela praia com os impulsos a conspirar. Estava tudo quente: as pedras, o mar, o céu, o corpo. Sem sobressaltos, fiquei na beira da praia até acabarem os cigarros. Quando o sono insistiu, deixei-me levar pela resignação e regressei a casa. Os olhos fecharam-se como num cadáver alado que deixava o corpo à mercê da manhã.

 

 

*inspirado em Nan Goldin

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uma crueldade por dentro

por jorge c., em 05.08.16

Passei os melhores anos da minha vida na cama. O corpo e o cérebro não se entendiam. No tempo em que aproveitamos para correr todos os caminhos e construir pontes eu estava na cama, a olhar para cima ou de olhos fechados. Lembro-me das sombras e do calor no quarto, dos filmes banais, da falta de comida, de um cheiro constante a tédio, da resignação. Não me posso arrepender, porém, de nada disso. Não nos podemos arrepender daquilo que não temos culpa. É uma doença cruel. 

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