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notas da realidade ficcionada na lezíria
Durante aquela idade em que não somos nem carne nem peixe e em que a tendência para a inconsciência é maior do que o habitual, descobrimos um ribeiro dentro do bairro. Havia, aliás, alguns ribeiros que desapareciam com a nova construção que ali começou a crescer, para nossa infinita tristeza. Alguns deles serviam os campos, mas este servia sobretudo um tanque de lavadeiras. Descia a encosta, passava por debaixo de uma pequena ponte de betão inacabada e terminava no tanque onde, por regra, passávamos as tardes de domingo, a ver as cores que nele se formavam. Era raro ser sempre a mesma. O cheiro do sabão confundia-se com outros odores mais duvidosos. Por vezes, ficava-se com a sensação de estar perante um esgoto aberto.
As casas em volta, nesse lado do bairro, formavam pequenas ilhas de construções clandestinas, onde viviam famílias de seis ou oito pessoas e onde existiu durante muitos anos uma panificação sobre a qual recaía o mito das caganitas de rato no produto final. O ribeiro atravessava a encosta que dividia as casas, como se fosse a Veneza dos pobres. Dentro das que conheci, o mobiliário não tinha um estilo uniforme e, para disfarçar a falta de luz, era feito de madeiras claras e frágeis e as prateleiras estavam sempre despidas. Os quartos eram divididos entre os membros da família, estando o espaço mais reservado destinado ao chefe de família e à mulher. Os miúdos partilhavam o quarto com os avós e, por vezes, nalguns casos, a sala acabava por servir duas funções. As cozinhas eram pequenas e as casas de banho interiores recentes e igualmente exíguas. A fossa que servia as casas também era partilhada e mais tarde até surgiu, sem se saber bem como, uma antena parabólica onde durante as férias tentávamos ver pornografia na RTL.
Certo dia, apercebemo-nos de que a água do ribeiro não morria ali e continuava por um cano. Intrigados, decidimos tentar seguir o curso da água e acabámos por descobrir um furo no campo do Sr. António - o nosso maior rival. Para escapar aos chumbos da espingarda com que habitualmente nos recebia, trepámos por um muro mais discreto para ir à chinchada e acabámos por cair num charco de lama e estrume que não parecia secar. Do outro lado do muro, uma linha de água suja parecia ser o que restava do ribeiro que saía do tanque. Nunca mais roubámos ameixas.
O Ribeiro da Maínça foi durante a minha infância e pré-adolescência a minha imagem íntima da miséria escondida. Quando deixei o bairro, nunca mais lá voltei. Mas às vezes, nos primeiros dias da Primavera, ainda lhe sinto o cheiro e a resignação. Depois das últimas urbanizações que tentaram fazer do meu bairro da infância uma zona mais urbana e sofisticada, a encosta por onde passava o ribeiro desapareceu da vista dos demais. Por vezes, quando me lembro dos rapazes, penso no quanto a vida nos sorria enquanto estávamos juntos, à procura da felicidade.
Rasga-se a tela presa na janela com o vento e um pequeno barco de porcelana cai e quebra-se no chão e as mulheres na secretaria falam falam falam falam falam de tudo o que interessa e não interessa seja de casa do trabalho da televisão a entrar dentro de casa e os operários aproveitam a corrente de ar que interrompeu a vaga de calor e paz no mundo mas logo regressam à obra de berbequim ligado intercalando ou em simultâneo com o toque dos telefones "está lá? só um momentinho que eu vou ver se ela ainda está na casa de banho" um sítio outrora privado mas que agora passa a informação transmitida a desconhecido como se as desculpas as razões os motivos as palavras a verdade fossem assim tão necessárias na conta corrente dos dias que vão passando assim com todo este ruído e com os termómetros a marcar trinta de mínima e quarenta de máxima em portugal continental e na madeira e em todo o lado menos nos açores onde ainda resta um bocadinho de civilidade de silêncio de natureza de vida porra!
O início nunca é claro. Desta vez, chegava a um terreno com uma casa semi-abandonada. Sabia da morte de um amigo do meu pai. De seguida, um outro era assassinado e depois um terceiro. A polícia chega e admito reconhecer um padrão. Talvez saiba quem é o assassino.
Por esta altura surge uma ex-namorada que passeia serena com uma capa vermelha de burel. Os olhos verdes condizem com as cores do outono. Conversamos um pouco e fazemos as pazes de desencontros demasiado passados. Nada mais.
Apanho um autocarro melancólico que atravessa o bairro da minha infância e recebo uma chamada. Um 96 que não se encontra registado.
- Estou?
Uma voz ensonada do outro lado responde como se eu a conseguisse reconhecer:
- Então a malta diz que tu andas todo maluco e passas a vida a escrever cenas estranhas?
- Qual malta?
- O pessoal da faculdade.
- Eh pá, já tentei explicar mil vezes... Mas quem é que está a falar?
Insisto na pergunta várias vezes e explico que perdi os contactos. Lanço uns nomes de amigos mais próximos com quem o contacto tem sido cada vez mais escasso. Do outro lado, o tipo liga a aparelhagem e ouve-se Welcome to the Jungle. "Está lá, está lá" e nada. Depois Night Train. "Estou? Estou?"
- É o Axl, meu.
- Axl? Mas tu estás cá?
Era o Axl Rose, amigo de longa data a dar a boa nova. Lá fui ter ao bar dele, naquele mesmo bairro, lembrando um pouco o Cais na Ribeira do Porto. Ao balcão, fomos pondo a conversa em dia. Desafiou-me para o ajudar aí com uns negócios. Nada de especial. Mas, primeiro, tinha de confirmar que ia à passagem de ano. Oitenta euros - duas pessoas. Confirmei-me imediatamente e disse que ia falar com a tal ex-namorada confiante de que haveria ali uma aproximação. Desabafei ali um bocadinho com o meu amigalhaço. Saí do bar e pelo caminho segurava no telefone hesitando na sms.
Sem saber porquê encontro uns tipos mais velhotes acompanhados por um sujeito com ar de carteirista. Ficamos os dois a conversar sobre língua portuguesa mas entretanto passa a mulher do Presidente da Câmara e eu tenho de me ir embora para me encontrar de novo com o Axl.
Estamos três no elevador. O terceiro já não sei quem é, mas de repente fui eu que o levei até lá. O contacto era meu. Vamos para a Penthouse. Pelo que me apercebo, envolve putas. Não me faltava mais nada. Aquilo já não me parecia uma coisa assim tão simples como ele a pintara. Lá chegados, avançamos pelo corredor. Três jovens semi-nuas abrem três portas diferentes e sorriem com um ar atrevidote. De repente, tiros de metralhadora por todo o lado, o cliente é assassinado por uns tipos que o Axl revela serem russos. Quando este amigo da onça me contou que lhes devia dinheiro e tinha de fazer favores, o despertador começou a tocar. Como sabia que eu conhecia toda a gente... E pronto, o gato começou a miar e acordei definitivamente.
Há alguns anos que não me lembrava tão nitidamente de um sonho.