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notas da realidade ficcionada na lezíria
Quando começámos a poder viajar, fomos ver os lugares de que toda a gente falava. Lembro-me que em Londres entrámos no Harrods deslumbrados e acreditámos que os países desenvolvidos se mediam pelo tamanho das suas lojas. As montras, cá fora, exibiam-se e apeteciam. Já nem olhámos para a porta dos museus, que tédio. Antes de irem ao Louvre, os meus vizinhos de baixo levaram as filhas à Disney, porque - dizem - a felicidade das crianças é que é importante e isso, como se sabe, vem em forma de orelhas do rato Mickey ou num pijama da Minnie dentro de um saquinho da loja do parque e com o recibo comprovativo de dois dias de felicidade eterna. E depois, claro, já não houve tempo para muito mais. Na escola, perguntaram à mais nova se sabia que rio passava por Paris e a miúda respondeu que era o rio de chocolate, que foi o único que ela viu. As crianças, agora, coitadinhas, não sabem nada.
O inverno, este ano, está a aparecer aos bocados, como num puzzle. Hoje, chegou a chuva, à hora do almoço. Quando cheguei ao gabinete ainda não estava cá ninguém. Por isso, fiquei a observar a rua da janela: os carros com os faróis ligados, iluminando a chuva oblíqua, atravessando lentamente a rua, quase a medo; as pessoas a fugir como que de uma catástrofe; tudo o resto - as árvores, o passeio, os carros estacionados, as cadeiras e as mesas da esplanada do Aracuá - imóvel e indiferente.
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Creio que a melancolia da chuva está relacionada com a reconstrução da imagem em movimento. Quando observamos a rua, sem a informação do som, usamos a imaginação para preencher o que está em falta e, então, transformamos a ideia da imagem em algo íntimo, como se fosse uma criação nossa. E, manipulada, a ideia torna-se confortável mas, ainda assim, apenas uma memória. Com o som, sem a imagem em movimento, a mesma coisa. É a memória dos sentidos, mesmo que seja por nós ficcionada ou sugerida por outro elemento externo: a literatura, o cinema, a música.
Não somos conservadores só porque temos aversão à mudança mas, sobretudo, por nostalgia. À medida que os anos vão passando, ficamos com a sensação de que algo ficou incompleto, que a felicidade é um pretérito imperfeito e que cada passo dado nos afasta do que poderia ter sido. Mas a nostalgia é uma desilusão. Porque a única coisa que nos transporta para o passado, para além da memória inventada, seletiva, são os objetos. Porém, os objetos são insatisfatórios e só nos recordam que a felicidade é efémera.
O debate sobre o mérito de um regicídio é antigo e parece perpetuar-se sempre que a história nos bate à porta. Porém, a própria designação implica que matar o rei seja diferente de matar um indivíduo comum. Implica, por isso, que o rei é supra-humano e que o seu assassinato merece uma designação própria. Se, por um lado, há uma desumanização do monarca e uma relativização do homicídio, por outro lado, há uma legitimação da sua superioridade divina. Não se pode, porém, ignorar que as motivações políticas que levam a um homicídio de um rei são diferentes das que levam à tragédia de um conflito subjetivo - o homicídio comum. Assim, parece mais adequado designar o homicídio com motivações políticas de politicídio.
Não perguntarei o que é a Verdade mas, antes, o que fazer quando a Verdade mudar. Quando chegar o momento em que o que era a Verdade deixa de o ser, como receber a revelação: aceitá-la com entusiasmo, aceitá-la com resignação ou reagir consciente de que a Verdade anterior é, agora, mentira?
No princípio era a verba. E então, entre a utilidade e o prazer, escolheram a primeira porque a segunda não era tangível. O prazer tornou-se deboche e os hedonistas parasitas. Todas as coisas espontâneas padronizaram-se e institucionalizou-se a noite e as manhãs ficaram artificiais e as salas dos restaurantes cheias de memórias inventadas pelo patriotismo romântico e as esplanadas violadas com a música que vende a mesma estética do prazer e a tarde a ter que ser produtiva. Quando a cultura do mundo morrer, será por decreto da lei do mercado, das novas tendências do cliente ou pelas regras de higiene e segurança do emprego. O cliente, que somos nós, é esse ser caprichoso que finge o que sente e que por preguiça deixou de gozar a vida.
Puristas, românticos de quaisquer construções, sempre os houve. Inventaram o nacionalismo, o autêntico, o verdadeiro, o original. O puro, lá está. Arrastam consigo, através da humanidade, os limites da imaginação. São os escravos do ressentimento, os fiéis guardiões da velha caverna. Não lhes devemos absolutamente nada.
A civilização ocidental associou a legitimidade da opinião à ideia de liberdade de expressão. Uma vez que há matérias da realidade que são factos, não estão sujeitas a opinião, que é uma manifestação de subjectividade, limitada à experiência e às preferências do indivíduo. De certo modo, parece que se gera uma confusão entre a escolha e a projecção dessa escolha em todos os movimentos do mundo. A escolha do indivíduo é legítima, não a projecção para o resto do mundo. Mas a cultura do solipsismo instalou-se de tal forma que a opinião infundada é assumida como legitimadora de coisas tão distintas como o juízo sobre os outros ou os comportamentos quotidianos simples, como a forma como nos deslocamos na rua ou como prestamos, ou não, atenção ao que nos rodeia. O indivíduo que pára no meio do passeio e interrompe a circulação dos demais não é um individualista mas, antes, um solipsista que ignora voluntária ou involuntairamente a dinâmica do mundo. Aquele que ignora o conhecimento científico em benefício da sua própria experiência para emitir juízos tem mais de solipsista do que de ignorante. Muitos destes comportamentos vão ao encontro daquilo que o indivíduo entende como opinião, ou seja, a sua percepção do mundo. A cultura do solipsismo poderá, então, ser vista como uma cultura de alheamento e, como tal, de desintegração social. Ou, se quisermos ser mais fatalistas, pode conduzir ao fim da comunidade como a conhecemos.
Ao contrário do reaccionário, o conservador não reage ao progresso, resigna-se. Mas essa resignação não tem que se manifestar através do pessimismo. O conservador pode, hoje, ser optimista se for, simultaneamente, libertário. Chamemos conservadorismo libertário à modalidade do conservadorismo que, não abandonando a sua natureza institucionalista, distingue entre intervenientes e beneficiários das instituições e, com isso, prefere a implosão das instituições à tolerância da sua subversão.
A abnegação também é uma vanglória. Desapegamo-nos das coisas não como uma demonstração de indiferença, mas sim de coragem. Enquanto virtude, a abenegação dar-nos-á dissabores, com o tempo. Todos esses lugares que deixámos para trás serão ocupados por outros. Por mais que acreditemos que os lugares não são de ninguém, há um dia em que regressamos e observamos os outros a comportarem-se como proprietários desses lugares que quisemos livres. E então sentimo-nos deslocados, estranhos em casa. Uma nostalgia ressentida consome-nos o espírito e põe a virtude da abnegação em causa. Já nem a luz ou a intimidade nos pertencem. No jardim da Cordoaria. No Twitter. E já não é apenas a sensação de sermos estrangeiros. É a sensação de não sermos bem-vindos.
Anthony Giddens definiu dois estádios que influenciam a vida do homem em sociedade. Chamou-lhes Sociabilização Primária e Secundária. A Primária será a fase da primeira infância, a educação de casa, o convívio com um círculo mais restrito. A Secundária, a fase de crescimento mais autónomo, com o alargamento do convívio e, logo, da percepção do mundo.
Não sendo eu sociólogo, nem tendo pretensão de falar sobre uma disciplina sobre a qual tenho um conhecimento muito vago, pensava nisto ontem enquanto observava um conjunto de reacções com padrões semelhantes num número alargado de indivíduos. De facto, as redes sociais virtuais permitem, hoje, uma ampliação invulgar do fenómeno sociológico e serão, certamente, um instrumento interessante de estudo. Não me competindo essa tarefa, reparo apenas em padrões, alguns padrões de indivíduos que conhecemos numa determinada altura da vida e que por obra dos algoritmos voltámos a encontrar. Será a mesma pessoa?
A questão tem tanto de filosófica quanto de sociológica. Na verdade, a formação da personalidade não pára, existindo, aliás, uma fase que me parece ser determinante na vida de qualquer indivíduo - a autonomia financeira e uma consequente percepção desse mundo novo que nasce não apenas com a responsabilidade, como também com novas relações provenientes da relação laboral, ou outros círculos que sobre ela gravitam.
Na fase a que agora me refiro, não é invulgar que qualquer um de nós redefina o seu círculo de amizades, adaptando-o aos seus interesses, aos seus valores mais solidificados e à sua visão da própria vida em comunidade. Enquanto que na fase infanto-juvenil (e até universitária) não podemos garantir que o grosso das amizades sejam escolhas voluntárias, por estarem limitadas por obrigações perfeitamente circunscritas, o modelo de vida construído a partir da autonomia financeira permite uma maior liberdade de escolha.
Talvez possamos chamar a esta fase de Sociabilização Terciária. E talvez seja esta que nos pode ajudar a compreender certas características que, por vezes, nos parecem incoerentes ou, até, inexplicáveis.
As próprias escolhas políticas, culturais e de consumo, ou a mera relação com o outro, dificlmente se manterão as mesmas a partir do momento em que o indivíduo é confrontado com uma nova relação de responsabilidades, de hierarquias e de cidadania.
Por outro lado, talvez nada disto faça qualquer sentido e seja só uma tentativa desesperada de auto-justificação.
De todas as ignorâncias, a certeza é a mais intransigente. Uma certeza não cede, não questiona. Ela afirma-se como autónoma das relações complexas entre ideias, conceitos abstractos, sujeitos, comportamentos e circunstâncias. A certeza não cumpre a lógica, mas sim uma construção falaciosa. É essa construção que vai justificar a sua natureza ignorante. O indivíduo que é consciente da sua ignorância não começa um raciocínio pela conclusão, procurando depois peças que construam - lá está - essa certeza prévia. Uma parte importante da intolerância absoluta nasce da ignorância da certeza.
José Gil falava há uns dias na rádio sobre a massificação da cultura e da obra de arte. Na breve passagem que consegui ouvir, o filósofo narrava um episódio a que assistiu num museu, em que dois indivíduos, jovens, passavam pelas obras para assinalar com uma fotografia e dizer "este já está". Luís Naves, num texto de magnífica ira, escreve que "em vez de emoções, as pessoas experimentam obsessivamente novas sensações, tudo à flor da pele, pois estamos na era do explícito e do efémero." Estaremos a passar por um período de desculturação? Ou seja, um período em que o modelo social se inverteu de tal forma que se assiste a uma perda do valor cultural e a uma preponderância do produto de entretenimento que, por sua vez, irá gerar uma sociedade cada vez menos exigente. Esta desculturação implicaria uma quebra na qualidade das elites e da forma do seu mediatismo ou, até mesmo, uma alteração radical das elites e do modelo social proposto pelos meios de comunicação. Não podemos, aqui, ignorar o papel da escola e do serviço público de rádio e televisão, bem como de todo o jornalismo. Não quero dizer com isto que um desmantelamento do fenómeno cultural, que eleva o conhecimento das sociedades, seja provocado. Parece-me mais que se trata de uma desvalorização progressiva, na tentativa de adaptar linguagens à tecnologia. O instrumento tornou-se o fim. A desculturação seria essa subversão.
Quando se tem 14 anos todas as ruas são tristes. Nada resulta. Volta-se para casa com o mundo inteiro a doer e, por vezes, só no quarto encontramos o isolamento pacificador. Ainda assim, fica-se com uma sensação de desconforto, uma inquietação que não se consegue explicar. Mas ali, longe das perguntas e das solicitações, pode estar a salvação. Fecha-te no quarto, liga o teu som e ouve sempre - sempre - os Xutos. Vais ver, o sol brilhará.
Deveríamos pensar sempre em que medida olhamos para as coisas, qual a escala de relevância que damos aos objectos, aos espaços, aos hábitos ou à nossa privacidade. Um artista cria sobre a medida das coisas do mundo. O seu alcance é ou será tão maior quanto a sua originalidade. Por vezes, ultrapassa todos os limites. Certa noite, sonhei com uma cidade modernista sem ainda conhecer Charles-Edouard Jeanneret e, quando o conheci, calculei que fosse possível uma vida inteira a construir o nosso espaço e a medir a nossa intimidade. Da pintura à arquitectura, Le Corbusier desenhou um esquema para a qualidade de vida e para a relação harmoniosa do espaço íntimo e do espaço público. Ao entender estes dois princípios complementares, o arquitecto passou para um patamar mais elevado, ao qual alguns poderão chamar de arte. Este ano, o Centre Pompidou dedicou uma exposição à vida e obra de Le Corbusier. A exibição concentrava-se mais na ideia artística abstracta e na natureza dos movimentos artísticos do que na arquitectura em si mesma. Esta concepção permitia ao indivíduo comum compreender a arquitectura, mergulhando na sua génese e criando para si uma ideia para as suas próprias medidas e, talvez, para as do mundo. Sem polémicas e em perspectiva, esta foi a celebração do espírito da arte que, de resto, nos daria muito jeito por cá.
Não sei se é a natureza das palavras que convoca o desentendimento, se somos nós que provocamos a sua ambiguidade, conduzindo as conversas ao fracasso. Cada frase dita, um prostíbulo de palavras que já nem a semântica salva. Demasiadas palavras, longas e excessivas frases, confusas, nervosas. Do outro lado, o outro recebe-as como balas, imaginando primeiras e segundas intenções, até que a subjectividade nos separe. Para sempre. Há tantas palavras como sensibilidades. Já pouco medimos umas e outras e, avançando como quem avança pelo meio de um acidente dessas corridas de carros americanos, seguimos perdidos e desentendidos na imensidão do universo. Reparo agora no dramatismo e na gravidade ridícula das minhas palavras e desejo nunca as ter dito.
"É evidente que o meu conceito de intelectual não se confunde com a jactância de algumas pessoas que se julgam pertencentes a uma espécie superior, a uma aristocracia que tivesse substituído a cor do sangue, ou o volume do dinheiro amealhado, pelo saber, como elemento de discriminação social. Para mim, o intelectual é o que sabe interpretar, porque o vive, o real com um pensamento mais elaborado do que a maioria das pessoas, no sentido de concorrer, à sua maneira, a um mundo outro, mais fraterno e mais justo."
Tenho pensado nesta ideia do Prof. Manuel Sérgio sempre que o tema da conversa é uma disputa entre o ser pragmático e o ser intelectual. Na verdade, hoje ninguém se quer assumir como intelectual e, ainda assim, tantos que gostariam de o ser. Sem ressentimentos. O ser pragmático não gosta do intelectual. O intelectual ou bem que é um presumido ou um tímido, com vergonha da intelectualidade, e despreza o pragmático. O pragmático devolve-lhe com a acusação de lirismo, misturando literatura com pensamento, numa demonstração inequívoca da sua falta de intelectualidade. É como se usássemos o pensamento para fins meramente utilitários, como arma de arremesso ou distintivo.
Estive quase para me chamar Inês mas, à última da hora, passou-lhes a iconoclastia. Não seria confortável, convenhamos. Já é difícil que chegue um tipo conviver todos os dias com o seu nome, que é um nome comum, tendo já tão pouco de próprio e distinto, e que, à partida, não carrega consigo nenhum fardo insuperável. E em matéria de nomes, admita-se, há fardos insuperáveis. Muitas vezes, são as alcunhas felizes, atribuídas pelos outros, que relançam a nossa esperança em viver com um nome que nos distinga. Outras vezes, somos nós próprios a criar um pseudónimo, como se um novo baptismo nos devolvesse a justiça de uma identidade pretendida. Aconteceu com Herberto e Gedeão. E Rómulo é um nome tão distinto e seguro. Mas por vezes olhamos para o nosso nome como se fosse um estranho, algo que não nos pertence, uma alcunha que nos atribuíram sem o nosso consentimento. É uma falsa crise de identidade. Olho-me, agora, ao espelho e repito o meu nome, tentando que a imagem reflectida e o nome combinem. Nada feito. São perfeitos desconhecidos. E se eu pudesse chamar-me outra coisa? Talvez uma letra, como em O Processo, ou uma cor como em Cães Danados. Qualquer outra coisa que me acalme esta angústia de não saber se algum dia olharei para o espelho e distinga uma identidade própria e única. Pensando bem, talvez Inês tivesse resultado.
Decidi há algum tempo que o meu filme preferido de João César Monteiro é Veredas. Ao longo desta narrativa tão difícil, o país vai surgindo lentamente, entre a autenticidade do folclore, a espiritualidade e a ética da tradição. E é aqui que concluímos que o folclore que se vai transmitindo de geração em geração tem uma nobreza natural que a tradição imposta pelo provincianismo, no pior dos seus sentidos, nunca poderá atingir, pois a sua principal preocupação é devastar tudo em volta, construir sobre a natureza, dominar, restringir, até conseguir, por fim, criar um dogma cultural, uma ilusão a que muitos se submeteram e que deixaram de questionar. Por entre os caminhos inóspitos de um Portugal pouco consciente da sua origem, Veredas é um ensaio idiossincrático que vai à procura da raiz do povo e do seu território através de uma luz e de uma cor que o país reserva apenas para os seus amantes.
Dizia o poeta que nenhum homem é uma ilha, como quem diz que só em conjunto se dão passos maiores, como aquele do astronauta americano que pisou a lua em nome da Humanidade. No entanto, nos passos pequenos do expediente nem sempre são precisos dois para dançar o tango. Por vezes, atrapalha. Não é, porém, o perfeccionista que pretendo descrever mas, antes, um homem que, descrente da capacidade de distanciamento dos demais para prosseguir um determinado caminho, sem manifestações subjectivas, se eterniza na liderança do movimento que o próprio criou e cujo ligeiro desvio não é capaz de aceitar. É um medo angustiante que a ideia se desvirtue nas mãos erradas. Ao Complexo de Louçã associa-se umbilicalmente a Síndrome do Sonso; o vírus da subserviência falsa; o inconformismo beato daquele que, assim que lhe derem oportunidade, deixará que a sua opinião se sobreponha ao caminho que foi traçado, não compreendendo que a ética dos meios justifica a moralidade dos fins.
Parado ao lado da Ermida de Alcamé, reparo na Lezíria, plana e plena. É para ela que olho, como um elemento único de encanto e paz. Mas a Lezíria é um conjunto de parcelas de gente diferente, território partilhado ou dividido. Há as gentes do arroz, há as gentes dos cavalos, as dos toiros ou as do gado manso. Dentro dessa diversidade, resiste a ideia da Lezíria, livre, que reserva para si o direito sobre os seus próprios valores. E por isso a vemos imensa e lhe chamamos Lezíria e não a propriedade deste ou daquele. É a essa resistência que chamamos Lezíria - a sua natureza.
O que fica na memória não se manifesta no imediatismo do tempo. A matéria que a alimenta é lânguida e a sua luz uma estrela rara. Para ser memória tem de ser tempo. Dentro desse tempo, entre a terra e o céu, estão a realidade e os sonhos. E porque os sonhos são a memória da imaginação, que é cúmplice do real, os registos são meras formalidades. O ano civil representa pouco na nossa relação com o universo, não obstante os breves episódios transcendentes como a morte, o amor, a ebriedade, a manifestação artística ou a descoberta. A cultura da novidade per si está a transformar o mundo num lugar vulgar, mais pobre e menos consciente. Quando um indivíduo resolve anotar as suas preferências numa folha de papel em padrões de 10, no fim de cada ano, está a limitar-se e a impedir-se de perceber o que, de facto, há de novo nele e como o mundo se transformou perante os seus olhos. O ano que agora termina foi igual a todos os outros mas as revelações - essas sim - foram diferentes. Na borda d'água vi o reflexo das cores, ouvi as sonatas para viola e piano do Shostakivich e, de certo modo, fui celebrando a vida entre a angústia, o tédio, a alegria e o entusiasmo das ideias, do amor e de todos os sentidos. Viajei entre a terra e o céu algumas vezes e foi na memória que encontrei a justificação para tais viagens. No fim de contas, sou um balanço de mim mesmo.
Viver num tempo em que se compreende a gravidade de uma depressão na perspectiva clínica é fascinante. Não nos pode, no entanto, desviar a atenção do nosso entendimento do outro. O paciente da depressão enfrentará um período de convalescença dos mais longos que a medicina conhece, porque esse período não é apenas o da conclusão clínica do caso, mas o do renascimento do próprio ser dentro da sociedade, com novos mecanismos de defesa e, com toda a certeza, com a sua nova percepção das coisas. Talvez lhe pudéssemos chamar um homem novo, na medida em que se libertou dos seus bloqueios ou se fechou para sempre do exterior. Transformou-se. O pós-deprimido é, por isso, o resultado da metamorfose.
Nada há a dizer sobre Salinger. Não há qualquer explicação ou teoria. É o que é - literatura. Creio que seria, aliás, um erro brutal tentar ensaiar uma explicação qualquer para Catcher in the Rye e Franny and Zooey. A experiência de leitura de qualquer uma destas obras é a única relação existente entre nós e uma espécie de adrenalina transcendente. Essa experiência resulta numa impressão íntima de satisfação e inquietação que nenhuma teoria literária conseguirá convocar. Sobra depois a angústia do fim, de não haver mais nada, e a vontade de voltar à mesma experiência como se nos quiséssemos repetir, eternamente, a nós mesmos.
Os cabelos cresceram e continuarão a crescer. Agora que já sorri, este é um Outono de esperança. É como uma força do céu azul nas nuvens cinzentas, a cor no preto e branco, o horizonte a rasgar a vida para uma outra vida, nova. A arte do fotógrafo é perpetuar as circunstâncias; é ver a poesia a passar para evitar o caos.
Nos westerns tradicionais o bem e o mal bateram-se, sempre, ao pôr-do-sol. Preto no branco. Mas, a vida são tantas verdades que será difícil reduzi-la ao confronto exclusivo e dogmático. Em O homem que matou Liberty Valance, há uma alteração dos pressupostos e adiciona-se o elemento racional, bem como a educação, sugerindo-se, aliás, que esta é a base da lei e da ordem. Talvez com isto, Ford quisesse dizer que a educação é a base de melhor civilização, o que implicará melhorias significativas e assinaláveis no comportamento dos homens e da sua forma de olhar em volta. A educação deveria ser, hoje, o elemento fundamental no nosso combate interior contra o preconceito intimista, pois é ele o principal rival das oportunidades e da harmonia social. Mas não é. Ainda não conseguimos educar contra o preconceito, o snobismo, a jactância de uma certa arrogância claustrofóbica que consome os chamados centros de decisão. Quando Salinger tentou publicar Catcher in the Rye, pela primeira vez, o editor a quem confiara o manuscrito ter-lhe-á dito que Holden Caulfield era louco. O escritor saiu dos escritórios a correr e em lágrimas. Naquele centro de decisão estava um homem que não compreendia a literatura, não obstante ser aquele o seu ofício. É possível que, ainda hoje, haja quem considere Salinger o arrogante. É a falta de talento quem tem, assim, mais prazer em decidir. O seu preconceito é a verdade que prevalece sobre os outros e não parece haver formação que lhes valha. Como eles, outros estarão à frente das grandes escolas para a cultura: a rádio, a imprensa, o cinema, a televisão, as salas de espectáculo.
Se a aplicação errada dos conceitos prevalecer, a linguagem mudará. Se a linguagem mudar, o comportamento dos homens também muda, pois que a sua visão do mundo altera-se conforme a qualificação conceptual e moral. A arrogância e a humildade vivem, por exemplo, um período de mudança conceptual, devido a uma certa subestima pela inteligência alheia. A auto-estima, o gosto pelo conhecimento e a curiosidade associada ao entusiasmo são confundidas com arrogância e apontadas como tal. Ora, pela lógica do conceito, é precisamente o desprezo sobranceiro pela condição do outro que define a arrogância. Mesmo que parta de um complexo de inferioridade ("tu, doutor" vs "eu, escola da vida"/ "tu, teórico" vs "eu, operacional"). Tendemos a associar a arrogância ao sentimento de superioridade social. Porém, ela pode ter uma natureza contrária, gerada num complexo de inferioridade, de insegurança, que, como mecanismo de defesa, inverte o conceito, exclusivamente, pela forma social, de um modo arrogante. É uma humildade sobranceira. Essa projecção da arrogância, ou reacção ao seu próprio complexo, é, por paternalismo, desconsiderada e o conceito subvertido em benefício de um complexo.
Não será justo chamar-lhe memória inventada. Será, antes, uma memória transformada pelas conversas, pelos olhos dos outros e pela experiência subjectiva e romantizada pelo tempo. Temos mais saudades do que as coisas significavam para nós do que das coisas em si mesmas. A memória é, também, um exercício egoístico, possessivo e, por isso, persistente e irredutível até prova em contrário.
A identidade e o sentimento de pertença são os elementos definidores de uma região. As circunscrições são, por isso, uma invenção administrativa do homem e da sua incapacidade crónica para gerir e distribuir os recursos. Um povo faz-se, sobretudo, da sua partilha cultural.
A memória é, talvez, uma das maiores provas de humildade. Ela é um sinal da nossa atenção, da nossa vontade de apreender, de aprender e de reconhecer. Recordo-me, por exemplo, da origem da maioria dos meus discos - quem me mostrou ou onde comprei. Recordo as pessoas e o seu entusiasmo (e como também o comprei). A discussão sobre arrogância e humildade não pode ser feita sem a ideia do reconhecimento. No fundo, é como se não houvesse dialéctica. Já ninguém ganha discussões por causa da dialéctica. A dialéctica está morta.
Mesmo que seja por mero passatempo, quando escrevemos somos confrontados com alguns dilemas éticos. Veja-se a construção de uma personagem, inspirada pela nossa percepção do mundo, com todos os preconceitos que tal envolve. O dilema está em publicar uma história de uma personagem a partir de estereótipos - um lugar comum latente. Para a literatura moderna será fundamental compreender que o mundo se transformou e que as idiossincrasias são, hoje, muito mais abrangentes. As características atribuídas a determinados grupos sociais alcançaram a transversalidade típica do fenómeno globalizador. Um bom escritor terá já entendido esta mudança e evitará a reclusão em estereótipos desactualizados. A própria utilização de estereótipos, para desenhar o perfil das personagens, obedece a um conjunto de complexos cuja generalização poderá ser injusta e sobranceira. Por outro lado, os comportamentos generalizados na sociedade conferem aos textos uma representação mais fidedigna da época. Este dilema é ético mas, a sua solução é literária. A questão que aqui coloco será óbvia para o leitor, certamente mais astuto, mas para o escritor, ou para o aspirante, a negligência que advém do entusiasmo da imaginação poderá resultar na sua desonra pública.
De toda a filmografia de Jim Jarmusch, Only Lovers Left Alive será a sua obra filosoficamente mais - como dizer? - preponderante. Talvez tenhamos chegado ao ponto em que se torna urgente valorizar o que construímos. Lembrei-me de um breve apontamento que havia escrito sobre este assunto, há uns anos, se me permitem a auto-citação:
"Desconfio que a memória não sobreviverá sem registo. A relatividade do Tempo é a soma do facto com a ideia. Sem a memória, a relatividade do Tempo não existe e o mundo tornar-se-ia caótico. Sem registo, a memória seria demasiado vulnerável à mudança e ao erro.
O fundamento das instituições, das organizações e da família é que a memória fique registada em várias formas, de modo a que seja transmitida, perdure e alimente a dogmática da soma da ideia e do facto.
Há, apenas, uma coisa que pode substituir o acompanhamento da transmissão desses valores: a imortalidade. "
Há palavras que nos monopolizam os dias. Aparecem a propósito de coisas insignificantes para darem corpo às ideias que estão, muitas vezes, órfãs de vocabulário. E podem ser palavras simples, das quais nos esquecemos por falta de uso, por não fazerem o nosso género. É importante que nos recordemos das palavras e voltemos ao Problema dos Universais e, tal como Ockham, que compreendamos o mundo através dos outros e saibamos nomeá-lo correctamente. A palavra do dia é narcisismo. Sobre a palavra narcisismo e a sua extraordinária amplitude devemos ser cautelosos. É importante que o significado amplo, ou a abrangência, não nos monopolizem de tal modo que acabemos numa obsessão vertiginosa, o que - como diria Kurt Cobain - não significa que não estejamos a ver bem o cenário. Para quê, então, a lucidez perante as palavras? Para quê deixar que nos consumam as horas com a pontaria inconsequente do seu significado?
Conta o Maestro Mário Coelho, antigo matador de toiros, que, no tempo das suas maiores glórias, instalou-se na Loja Nova em benefício da sua privacidade. Naquela época, as figuras do toureio eram como ídolos pop, num país onde ser artista era desprestigiante. Longe do anonimato e da insignificância dos primeiros passos, sentiam necessidade de isolamento para recuperar as forças e o espírito. O quotidiano da vila, depois das grandes digressões pelo mundo - entre jantares, festas, entrevistas e toda essa sociabilização protocolar - consumia o espaço privado de quem procurava a quietude merecida. Talvez essa carência do silêncio fosse encarada como um sinal de sobranceria e elitismo, por incapacidade de se compreender a rotina exaustiva dessa exposição ao mundo. Na verdade, todos nós, por vezes, mais exigentes com a reserva da privacidade, procuramos um momento de turistas na nossa própria casa, admitindo como legítima a indisponibilidade para a habitual presença nas ruas onde queremos voltar a caminhar anónimos. É como se, por breves instantes, a vida pudesse ser um quarto de hotel, dispondo-se de um cartão para colocar na porta, no qual anunciamos do not disturb.
Entre o tédio e o vento, recebo uma mensagem a informar-me sobre um programa dedicado à música popular portuguesa. No seguimento de uma troca de impressões sobre o documentário, notou-se a tendência para uma temática geográfica, à época. Foi talvez um tempo em que se quis fazer de Portugal um destino à la Saint Tropez. Eram cenários idílicos, de estações amenas, termas e cuidados; uma vida saudável rumo à eterna serenidade e, quem sabe, ao amor providencial. Lembrei-me daquela canção do João Maria Tudela que costumava cantar, por graça, quando era miúdo - Lua de Mel em Portugal. Lembrei-me desses lugares por onde passei, num tempo em que as férias de três meses enchiam os salões de glamour e familiaridade, como se Gatsby não tivesse rasgado a Lei Seca. Era um Portugal de virtudes serôdias, que nascia da estética asilada destas pousadas, pensões e estalagens, que ficou congelado com aqueles lugares ou a degradar-se longe da vista e do coração. Na Lezíria, a memória do Gado Bravo - lugar cimeiro do meu imaginário ribatejano - foi arruinada pela passagem do tempo e da vontade, como que condenando o western português ao olvido derradeiro, numa morte tão lenta quanto o tempo permitir. O charme dos lugares é agora uma paisagem triste na memória dos loucos.
Uma cidade mestiça é uma cidade mestiça e não há nada a fazer. Todos os dias somos coisas diferentes. Umas vezes homens do rio, outras do campo e outras ainda dos montes. Acordamos no meio desta cidade a querer ser muita gente, a querer ser gente. E então fala-se alto, gesticula-se, como se cada momento fosse o derradeiro, na ânsia de se ser notado, e o que parece uma vaidade é só o medo da insignificância. É um medo que se transforma em tensão que nos amarga os corações. É gente rude, dizem. Mas, como, se a cada olhar cruzado com o rio, a cada movimento da muleta, a cada respirar dos bichos, a cada compasso fandango, os olhos se deitam sobre a vida como velhos amantes que se tocam com gestos de cuidado?
Tenho passado a vida numa viagem. Fiz esta viagem tantas vezes quantas as possíveis, como se quisesse regressar a um lugar onde nunca estive. O comboio partiu sempre sem pressa mas, o meu corpo, agitado, angustiava nervoso a cada casa que descaracterizava a paisagem idealizada. Passei veloz por todo esse caminho, as casas paradas, a ficarem para trás, enquanto o meu movimento era um fio de tempo inquieto. Foi o tempo das cidades, da pretensão urbana em ser vida decente. Foi o tempo das exigências e das solicitações impacientes que congestionaram o espírito em hora de ponta.
Cada viagem que fazemos deixa-nos mais longe da origem. Porque sempre que regressamos somos outra gente e outros lugares dentro de nós, um outro mundo que nos define noutras formas até à imperfeição final. Na verdade, nunca serei o mesmo no mesmo lugar mas, aqui estando, agora, sinto-me a ficar como se de um regresso decisivo se tratasse.
Faço a viagem novamente e vejo as casas e as árvores e os campos a passarem velozes e eu a ficar. Da janela, vejo o horizonte fixo e um sol a pôr-se razoável para os olhos lentos. Todas as outras janelas da carruagem estão fechadas, os olhares impacientes e o pânico do reflexo da luz lá de fora nos monitores dos computadores; um trabalho para concluir antes de visitar a família, um negócio mal fechado, uma conversa interrompida durante o arranque do comboio sobre as relações online, o filme sacado, o jogo circular. Passam velozes pela paisagem, pelos lugares e pelo céu sem fim. Vão perder o pôr-do-sol e o cheiro da fuligem na penúltima estação que nos permite sonhar com o que nos espera, que nos ilude sem certezas ou nos angustia com a certeza da incerteza. É essa a impressão debaixo da pele.
Este é um breve diário escrito na borda d'água das pequenas vilas e cidades do Baixo-Tejo, onde a lezíria se estende até ao infinito, ao meu infinito pessoal. Um diário único de ficções que se estreia no Bloomsday, por mera coincidência mas, que será sobre as mesmas dúvidas.