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recato

por jorge c., em 31.07.14

Conta o Maestro Mário Coelho, antigo matador de toiros, que, no tempo das suas maiores glórias, instalou-se na Loja Nova em benefício da sua privacidade. Naquela época, as figuras do toureio eram como ídolos pop, num país onde ser artista era desprestigiante. Longe do anonimato e da insignificância dos primeiros passos, sentiam necessidade de isolamento para recuperar as forças e o espírito. O quotidiano da vila, depois das grandes digressões pelo mundo - entre jantares, festas, entrevistas e toda essa sociabilização protocolar - consumia o espaço privado de quem procurava a quietude merecida. Talvez essa carência do silêncio fosse encarada como um sinal de sobranceria e elitismo, por incapacidade de se compreender a rotina exaustiva dessa exposição ao mundo. Na verdade, todos nós, por vezes, mais exigentes com a reserva da privacidade, procuramos um momento de turistas na nossa própria casa, admitindo como legítima a indisponibilidade para a habitual presença nas ruas onde queremos voltar a caminhar anónimos. É como se, por breves instantes, a vida pudesse ser um quarto de hotel, dispondo-se de um cartão para colocar na porta, no qual anunciamos do not disturb.

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recolher obrigatório

por jorge c., em 30.07.14

Talvez por o sol se pôr atrás dos montes, o dia e a noite misturam-se numa subtileza invulgar e as tonalidades da lezíria harmonizam com a luz rarefeita e com o primeiro sopro do vento. Quando o vento pára, a borda d'água é invadida por um exército de insectos, enviado dos arrozais para se vingar do esquecimento.

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a margem de ferro

por jorge c., em 29.07.14

Os padrões e estereótipos tomaram sempre conta da vida no bairro. Talvez assim o seja nos outros bairros mas, foi neste que Marcos cresceu e conheceu o seu primeiro mundo. No liceu a diferença era pouca. Notava-se nas roupas, nos cabelos, nos gestos e pouco mais. Os dias passavam entre irreverências parvas, glórias fáceis e sofrimentos tão profundos como um filme de domingo à tarde. E era precisamente ao fim-de-semana, ou nas férias, que os espíritos se revelavam, entre a lide doméstica, os desentendimentos familiares provocados pelo incumprimento das regras, os namoros em cima das motorizadas ou os passeios nos carros que ostentavam modificações grotescas ao modelo original. Desenhou tudo isso a carvão e, quando o papel acabou, foi comprar mais a Lisboa, para voltar apenas ao fim do dia, já cansado mas deslumbrado com a urbanidade dos estilos. Numa dessas viagens cruzou-se com um fantasma do passado, uma auto-proclamada rebelde, na adolescência, assumindo-se como "muito frontal" e "independente". Faltava, com regularidade, às aulas, não por irreverência mas, antes, por necessidade. Aos fins-de-semana, Soraia era reclusa de uma história de violência e de obrigações anacrónicas provocadas pela autoridade embriagada do pai. Pouco depois de ter começado a trabalhar na fábrica, ainda se inscreveu num desses concursos para jovens talentos na tv mas, acabou por não passar à fase seguinte, por motivos pouco claros. Perseguiu o sonho de ser cantora, como dizia, por bares de karaoke, de Alverca a Sacavém, chegando mesmo a cantar no Parque das Nações, numa bonita noite de inverno. Na altura, dizia-se que, se procurava sucesso nesta área, era no oeste que apareciam muitos caçadores de talentos e gente ligada ao meio, em fuga da rotina. Foi lá que conheceu o pai do seu filho, que andava desejoso por sair da Malveira para viver mais a cidade, nos arredores de Lisboa. O fim do sonho artístico começaria no banco de trás de um ZX, na Ericeira, e estender-se-ia por toda a vida, como quem tem saudades do que nunca foi, no Bom Retiro. Os breves apontamentos de Marcos, sobre uma anti-heroína suburbana, nunca sairiam do seu bloco de notas. São histórias que não interessam a ninguém.

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lá longe

por jorge c., em 28.07.14

Sob a névoa que cobre toda a lezíria, esta manhã, nem um sinal da memória. Nem pela cidade, nem por todas as vilas do baixo-Tejo, nem em lado nenhum - a memória de uma guerra que nos levou as gentes, que nos mudou os dias, o caminho e os limites. Há 100 anos dar-se-ia o mote para aquilo que, mais tarde, chamariam de expedição de um grupo de pobres rapazes que mal se haviam deslumbrado com os poucos prazeres de uma vida. Tudo tão pouco, faz agora tanto tempo. E nós ainda a fazer de conta que não é nada connosco.

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manual das boas práticas urbanas

por jorge c., em 25.07.14

Beba com moderação.

Evite falar alto ou expressar emoções em público. 

Guarde a sua opinião para momentos apropriados, sem nunca se comprometer.

Sorria com discrição e calculismo.

Identifique aqueles que lhe poderão ser úteis, ainda que não compreenda como (não perca tempo com o resto).

Escolha música sofisticada e recorra a valores seguros quando tiver a certeza que, à época, não eram excessivamente populares.

Seja elegante e observador na mesa. Utilize os gestos para acompanhar as suas palavras com confiança. Não esbraceje.

Leia mas, não desperdice o tempo com lirismos. Seja prático e alimente a confusão entre organização e soluções milagrosas - chame-lhe inovação.

Tome atenção aos lugares comuns - não seja vulgar. 

Fale da sua actividade profissional com evasivas. Sugira que lidera na sombra. 

Seja cauteloso e misterioso nas redes sociais. Confira o texto nunca menos de cinco vezes antes de o publicar.

Esteja descontraído e, quando for cagar, lave-me bem essas mãos.

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esquecimento global

por jorge c., em 24.07.14

Entre o tédio e o vento, recebo uma mensagem a informar-me sobre um programa dedicado à música popular portuguesa. No seguimento de uma troca de impressões sobre o documentário, notou-se a tendência para uma temática geográfica, à época. Foi talvez um tempo em que se quis fazer de Portugal um destino à la Saint Tropez. Eram cenários idílicos, de estações amenas, termas e cuidados; uma vida saudável rumo à eterna serenidade e, quem sabe, ao amor providencial. Lembrei-me daquela canção do João Maria Tudela que costumava cantar, por graça, quando era miúdo - Lua de Mel em Portugal. Lembrei-me desses lugares por onde passei, num tempo em que as férias de três meses enchiam os salões de glamour e familiaridade, como se Gatsby não tivesse rasgado a Lei Seca. Era um Portugal de virtudes serôdias, que nascia da estética asilada destas pousadas, pensões e estalagens, que ficou congelado com aqueles lugares ou a degradar-se longe da vista e do coração. Na Lezíria, a memória do Gado Bravo - lugar cimeiro do meu imaginário ribatejano - foi arruinada pela passagem do tempo e da vontade, como que condenando o western português ao olvido derradeiro, numa morte tão lenta quanto o tempo permitir. O charme dos lugares é agora uma paisagem triste na memória dos loucos.

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do tédio

por jorge c., em 24.07.14

Sobre alguns dos temas mais discutidos, por estes dias, não tenho qualquer opinião. Tenho desviado os olhos das parangonas dos jornais, ao passar o quiosque, e mal ligo a televisão. Mas, não foi a realidade que me levou ao tédio. Foi, antes, o excesso das opiniões que a consumiram. 

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jovens empresários

por jorge c., em 23.07.14

Dizem que é "olho para o negócio", este instinto de adaptação às circuntâncias que vai adequando aos tempos. Andou no esquema dos telemóveis; foi sócio de um cyber café chamado Espaço 2000; promoveu festas dos anos 80 nos anos 2000, já o café futurista tinha sido passado a um jovem casal de 40 anos, através de uma ajuda preciosa da Associação Nacional de Jovens Empresários, transformando-se no proeminente snack-bar Matias; vendeu produtos de beleza e dietistas. De há uns anos para cá, graças a uma internet muito diferente do seu tempo do cyber café, começou a ler autores americanos que falavam de novas práticas e sugeriam abordagens inovadoras. É a auto-ajuda da gestão e do marketing. Tem assistido a conferências através de vídeos disponíveis online e está a desenvolver um novo projecto, como se diz agora. É uma plataforma de serviços que agrega clientes e empreendedores. A sua linguagem super-positiva não anda longe dos anúncios de tele-vendas que consumiram a televisão nos anos 90. Gosta de exteriorizar a sua opinião sobre os sacrifícios e a necessidade de trabalhar, ao invés de andar para aí armado em doutor. Tem 44 anos e é profundamente infeliz.

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água

por jorge c., em 22.07.14

Há um vídeo de Hermeto Pascoal, da Música da Lagoa, no qual o brasileiro e O Grupo, a banhos num pequeno lago rodeado de quedas de água, tocam uma modinha que parece nascida da natureza, entre folhas e borboletas. É nessa frescura que tenho pensado quando, ao chegar a casa, no fim do dia, o corpo mal respira, poluído pelo excesso de civilização. Quando o calor sufoca as margens do Tejo, imagino a água noutros lugares, como um oásis. 

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cidadania na pastelaria

por jorge c., em 21.07.14

Não tendo sido o caso que me ocupou as maiores preocupações das últimas semanas, já que no gabinete contíguo a este, onde me encontro, uma das estagiárias insiste em considerar as opções que as frequências médias da rádio fazem por si, foi um episódio que se viria a revelar de interesse mediático durante algum tempo. Quando naquele dia entrei na pastelaria reparei, inadvertidamente, na irritação de Telmo Conchinha, já que essa era a sua habitual postura na vida - uma escolha legítima, como tantas outras. Há homens que despejam baldes de bonomia pelo passeio público, outros que destilam as mais variáveis formas de ressentimento, outros que, de tão confiantes consigo próprios, passam pela rua sem se aperceberem dos restos mundanos. Telmo Conchinha escolheu andar sempre irritado. Não me recordando ao certo das suas primeiras manifestações, a grande explosão aconteceu quando o rapaz do talho (era assim que o conhecíamos, julgando eu, até, que nunca lhe haviam perguntado o nome) comentou o desaparecimento do marco do correio. Confesso que ainda agora me admiro por não terem voado logo os cinco pratos, três chávenas e respectivos pires e os dois copos que se encontravam em cima do balcão. Indignado, Conchinha reuniu ali um núcleo de contestação que se disponibilizava para a criação de um movimento pela memória patrimonial. O marco do correio, ao fundo da rua, era um símbolo inequívoco de toda uma identidade - diziam. Responsabilizaram-se os autarcas, as autoridades dos "muitos e inúteis institutos públicos", o governo, e chegou mesmo a sugerir-se uma queixa a apresentar nas Nações Unidas. O argumentário era consensual: esta sociedade pós-moderna estava a operar cirurgicamente nos valores e nas emoções populares. A carta estava morta. O correio estava morto. Já ninguém escrevia, até porque nas escolas, segundo dizem, os miúdos já não aprendem nada. Especulou-se sobre os motivos que haviam conduzido àquele atentado ao património. Uns sugeriram que teria sido por razões urbanísticas e que o marco era, agora, considerado um impedimento à mobilidade; outros garantiam que estava relacionado com a construção e que tudo não passava de mais uma negociata nas barbas do povo. O director dos Correios estava, como é óbvio, envolvido neste escândalo que o jornalista Idalécio Mendes se propôs a investigar mal acabasse o seu abatanado em chávena escaldada. A discussão ia já longa quando Telmo Conchinha decidiu dar-lhe alguma ordem:

- Meus senhores, temos de ser práticos. A primeira coisa a fazer é enviar um email ao Presidente da Câmara.

Todos concordaram.

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o boato

por jorge c., em 15.07.14

Depois de uma manhã invulgar, por compromissos médicos inadiáveis, Manel dos Pombos - nome herdado de seu pai por razões que agora não interessam contar - não se encontrou com o grupo habitual no sítio do costume. Porém, para que não julgassem que algum incómodo ou vaidade lhe tivesse assaltado o espírito, engoliu o almoço e arrancou em direcção ao placard dos mortos a fim de saber as novidades. Nada. É certo que é mais raro morrer alguém ao Domingo. A segunda-feira costuma, portanto, ser menos agitada. Do outro lado da rua, protegidos pela sombra, os outros ignoraram-no. O homem aproximou-se, dominado por essa incerteza de quem chega a meio de uma festa para a qual nunca houve convite, ensaiando uma atitude confiante. Mas, por dentro, Manel dos Pombos sentia a angústia de uma possível reprovação dos seus pares. Pelo caminho, havia decidido evitar justificações, decisão esta que, não tendo sido bem acolhida, acabou por gerar um desconforto que o obrigou a retirar-se antes do tempo previsto. No dia seguinte, o boato espalhou-se.

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margens

por jorge c., em 13.07.14

Esta proximidade distante que nos impede de cumprir a nossa missão já deixou de ser apenas literatura. Já não é um poema do Borges ou um filme de Wenders. Aos domingos, quando me recordo do cais num outro verão, que não este, chega a parecer que o vento sopra mais forte para nos afastar do plano inicial e nos devolver, cruelmente, à realidade.

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tábua rasa

por jorge c., em 11.07.14

Tem resistido, neste tempo de velocidade e modernização dos meios, uma tradição muito antiga que vem servindo, ao longo das décadas, de motor da pedagogia geneológica. O "placard dos mortos", tal como é conhecido, desafiou o tempo e constitui um dos mais interessantes fenómenos do concentração social. De certo modo, é como se depois de mortos fosse promovida uma exposição da nossa vida, com pormenores íntimos, detalhes do carácter, da conduta social e profissional. Do mais profundo dos anonimatos passamos, em segundos, ao estrelato das ruas. Filho deste, sobrinho do outro, genro de tal, trabalhou aqui e ali e chegou mesmo a existir em determinadas circunstâncias. É este o nosso futuro. Passaremos, então, pelas ruas como um cadáver esquisito, de perfil incompleto, com falhas e lapsos definitivos que se perpetuarão como um desses temas minimalistas que ficam a pairar. O tédio e a temperatura tomaram conta da tarde. Lembrei-me de Arvo Pärt e encontrei solução para esquecer o calor.

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da maturação da infantilidade

por jorge c., em 11.07.14

É a sexta vez, hoje, que ouço Uncle Remus, de Frank Zappa. Lembra-me uma época em que o corpo não estranhava os relvados urbanos, depois das correrias entre a Praça D. João I e a da República. Nos dias de calor, como o de hoje, uma brisa imaginária corria sobre nós como num oasis. O Porto era a nossa pátria de liberdade. Mas, na borda d'água as margens apertam-nos, como naquele poema de Brecht. E então regressa aquela vontade de anarquia juvenil, só para irritar, só para tirar do sítio. Vou, agora, ouvir Uncle Remus pela sétima vez. É um excesso necessário.

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aforismo II

por jorge c., em 09.07.14

Envelhecer é apercebermo-nos dos anos que já passaram sobre a memória das primeiras coisas.

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aforismo

por jorge c., em 09.07.14

O lirismo do fim de festa é, em tudo, semelhante ao do fim das relações - resiste sempre uma esperança inconsequente.

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arrumações

por jorge c., em 09.07.14

Nos meus apontamentos vão surgindo notas com registos diferentes. Se, por um lado, há uma vertente ficcional muito forte, não poderei esconder a vontade de escrever numa forma mais ensaística ou aforística. O formato escolhido para este diário - o blog - implica que tenhamos noção de que alguém o poderá ler. Dentro dessa eventualidade, interrompemos aqui a sequência ilógica de textos para um momento de organização logística. Assim, serão aplicadas etiquetas aos textos, facilitando a utilização que cada eventual leitor lhe queira dar. Nada será como dantes. 

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o homem de sorriso amarelo

por jorge c., em 04.07.14

Ainda que evitando que o ressentimento se apoderasse de mim, reparei no homem de sorriso amarelo. Uma voz doce sobre a praça e uma expressão cintilante. Nem tudo o que luz é oiro, dir-se-ia. Uns, mais distraídos, cederam e entregaram-se carentes nos braços sonsos que tecem a sua rede caprichosa. O homem de sorriso amarelo não come por ter fome mas, sim, por gula.

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