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descobertas da 4ª década

por jorge c., em 27.08.14

Por vezes, o nosso fio condutor, a nossa voz autêntica, são as brincadeiras de criança. Pergunta-te, a ti mesmo, ao que brincavas em menino - será aí que encontrarás a tua voz.

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requiem por tomás

por jorge c., em 25.08.14

Quando as pessoas estão vivas, a nossa esperança de as encontrar, ou de que partilhem connosco as suas singularidades, é legítima. A admiração que lhes entregamos também nasce da sua generosidade. Porém, o culto da personalidade e o mistério têm a medida do alcance dos indivíduos. Olhos que não vêem, coração que não sente, como sói dizer-se. A ti, José Tomás, vejo-te como um fantasma do passado. Para te admirar os movimentos sublimes, recorro aos mesmos meios que uso para ver Rafael de Paula, Antoñete, Camino ou Joselito. És um toureiro indiferido. Como posso admirar um toureiro do meu tempo, se não me dá a oportunidade plena de o fazer, colocando a fasquia na capacidade económica do aficionado e na raridade do evento? Como posso eu considerar melhor ou pior um toureiro de uma época, se a sua presença é tanta como a de Manolete ou Cordobez? Não há nenhum matador de toiros que conheça a glória sem público. Não há glória se o espada não se expõe e não aceita o desafio, percorrendo o mundo. Só é toureiro quem toureia. Por isso, aqui me despeço de ti, José Tomás. Não me faz mais sentido defender-te num tempo quando estás, para mim, noutro tempo. Despeço-me da emoção falsamente imediata de uma contemplação extemporânea. Só o passado admite as lendas. O presente é dos vivos. 

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a praia

por jorge c., em 21.08.14

Todos os anos, Cardoso é coagido a passar férias em Agosto. Não é fácil. A mulher põe-se a ver aqueles programas da tv com as raparigas novas todas bronzeadas - e bem boas, não pode negar - e quer replicar a experiência. A prainha, o sunset, a selfie no sunset da prainha - todo um conjunto de emoções projectadas nos aparelhos da audiência online. Na sua cabeça faz tudo sentido. Mas, Cardoso já sabe como é, um gajo carrega o carro com meia-casa, não vá faltar alguma coisa indispensável à sobrevivência: a máquina dos sumos, por exemplo, 3 ou 4 casaquinhos para pôr pelas costas que pode muito bem correr uma aragem marota, sapatos para as eventualidades (festas e vernissages), cabides para o caso de não haver no apartamento, mais um ou dois cobertores, as coisas da praia (cadeiras, 2 chapéus de sol, toalhas, cremes, chinelos e chapéus) e é uma pena que não caiba uma ou outra pecinha de mobília para nos sentirmos mais em casa. "Eu não te disse que isto ia dar jeito?", dirá ela, por mero capricho, na única vez que utilizar um dos objectos. Duas horas depois arranca em direcção ao Algarve, coisa que mais ninguém se parece ter lembrado até chegarem à ponte sobre o Tejo, porque a maria gosta de passar pelo grande aqueduto, e se aperceberem que estão metidos numa fuga colectiva, como se estivessem a ser evacuados por causa de uma catástrofe ou de um ataque extraterrestre. Chegados a Armação de Pêra - conceitos de Algarve que não iremos discutir por agora - toca a descarregar e subir os 4 andares do apart-hotel sem elevador, cortesia das Construções Alenquer Lda., empresa falida pouco antes da conclusão da obra do poço do elevador. São clientes habituais. Mesmo partindo de manhã, só lá pelas seis da tarde é que está tudo pronto, ficando ainda a faltar a ida ao supermercado e a confecção do jantar. Para este, não será difícil: comida de puta, que é uma escolha mentalmente pouco desgastante neste tempo de repouso. Os ovos com salsichas serão, aliás, a ementa preferencial do resto da estadia, bem como a salada de atum e a pescada cozida, para não perderem a forma, em prejuízo do apetite. No dia seguinte lá põem, finalmente, o pé na praia. Como estiveram a fazer as sandes para o dia todo e Sónia gosta de deixar tudo arrumadinho, não vá aparecer a Rainha de Inglaterra ou aquele rapaz que anda sempre aos saltos na televisão, que é uma pessoa que aparece em todo o lado (vá lá saber-se porquê), quando chegarem à praia, a areia ter-se-á transformado em pele e tecido. Será quase por milagre que um casal de mamutes e os seus três encantadores aprendizes de taliban, após contenda familiar que provocará graves incidentes diplomáticos, devido ao ruído que, por pouco, não invadirá Ceuta, decidirão dar a debandada. "Olha ali um lugar", largada e fugida, e lá vão eles, à conquista do metro quadrado de sonho e que, só mesmo em sonhos, será seu, pé ante pé, no meio de co'licenças e mil perdões, truques de equilibrismo e passagem de obstáculos olímpicos. Depois de uma tentativa gorada de dar um mergulho, entre criancinhas a chapinhar em pranchas de plástico que lhes darão a ilusão do surf e motas de água na zona mais livre para dar umas braçadas, regressam ao, então, pequeno espaço partilhado com quatro adolescentes à procura da sua personalidade. Mesmo que se consiga estender, não evitará os banhos de areia, os tropeções alheios e a negligência de bolas inconscientes. No momento em que ficarem mais à-vontade, começarão as pressões para regressar ao apartamento. Há coisas para fazer, banhos para tomar, o jantar e os preparativos para a manhã seguinte, de forma a programar uma chegada à praia mais vespertina. À noite, depois da louça lavada e do final da novela, dão um passeio mais urbano, acompanhados pelas melgas e mosquitos para os quais destacarão, ao longo do serão, toda a sua atenção. Nos dias seguintes, a rotina manter-se-á, exceptuando o passeio ocasional à marina de Vilamoura, numa ambição disfarçada de encontrar pessoas conhecidas da televisão ou das revistas, e do penúltimo dia, durante o qual estabelecerão um breve contacto com um "casal amigo", tal como Sónia lhes chamará mais tarde, na rentrée do trabalho. Enquanto eles se abeiram da água, como quem faz, finalmente, uma pausa para cigarro, numa conversa sobre as trivialidades do trabalho, do crédito e da pré-época, elas ficarão a definir as estratégias dos seus recentes matrimónios, traçando planos que os dois ex-indivíduos só conhecerão mais tarde: os filhos, o colégio dos filhos, a progressão na carreira e as férias paradisíacas. Cardoso anuirá resignado. Na manhã a seguir ao regresso, acordará exausto a caminho do trabalho, desejoso de férias. Voltará a imaginar-se a banhos na Ferraria, em S. Miguel, com os seus colegas de faculdade, ou nos festivais de verão onde, em tempos, se sentiu livre de obrigações e compromissos sem sentido. A rotina mudará apenas de sítio. Trabalho suplementar nunca foi férias.

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à memória de federico garcia lorca

por jorge c., em 19.08.14

Pelas duas da manhã, em ponto, talvez. Nenhuma hora é certa para morrer num teatro sem paredes, praça sem arena ou dignidade. Federico caía morto, matado, como um pedaço de nada. Não houve combate, nem sequer desafio. Os disparos sobre o poeta que viu Nova Iorque e que admirou a paixão e a coragem dos homens, da Andaluzia para o mundo, no meio dos silêncios, foram a toada trágica, a descida do pano derradeiro. As palavras ficaram escritas pelas ruas das cidades como uma tatuagem. Toma esta valsa de boca fechada. Toma esta luz de coração inquieto. Somos o teu peito, Federico, aquilo que resta da humanidade.

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as férias

por jorge c., em 18.08.14

Houve um tempo em que a vila migrava para a costa oeste, durante o estio. De São Pedro de Moel à Ericeira, com especial incidência nas praias de Santa Cruz, as férias de verão eram um prolongamento da convivência, numa outra parte. Quando o mar estava mais violento, e a neblina ocupava os areais - o que acontecia com frequência -, os dias eram animados com sardinhadas, jogos de rua e passeios serenos que devolviam o oxigénio aos corpos exaustos. O tempo parava e as obrigações ficavam suspensas nas secretárias. As crianças tinham espaço para as pequenas aventuras e o cheiro dos pinhais misturava-se com o da água oxigenada e do mercúrio-cromo, no fim do dia. A liberdade inocente das férias culminava nas noites frescas, entre cartadas e conversas agasalhadas nas esplanadas. Naquela época, poucos iam para o Algarve dos pobres e muito poucos gozavam o dos ricos. A costa alentejana era ainda território por desbravar e o estrangeiro, um delírio. A oferta seduziu a procura e, por mais que se negue, destruiu o nosso retiro com prédios e condomínios de lixo. Passámos de veraneantes a clientes. Consumimos férias. Consumimo-nos. 

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o mito

por jorge c., em 11.08.14

Terá sido por esta hora a que escrevo que a notícia chegou através da televisão. Talvez naquele 11 de Agosto de 74 o vento corresse com a mesma intensidade pelos becos da cidade, como agora, uivando a dor irreparável da perda do toureiro. Talvez a lua estivesse cheia de luz, iluminando as lezírias e os montes, e o Tejo a reflectisse para a eternidade. É como aquele tango de Piazzolla - Adios Nonino - que mistura as pulsações e nos deixa numa angústia sem fim. Há, ainda hoje, um silêncio pouco estival para nos ajudar a sentir a presença de Falcão pelas ruas, como se andasse por aí com um sorriso fraterno a fazer de conta que era um de nós; como se aproveitasse a luminosidade da lua cheia para lidar um novilho no tentadero dos Palhas, criando a ilusão aos demais de que estariam numa Barcelona que já não existe a assistir ao seu triunfo imortal, fixo, imóvel, destemido. O encontro dele com os que, como eu, nunca o viram, é a poesia necessária para imortalizar a glória e alimentar os espíritos.

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o sábado

por jorge c., em 09.08.14

Aproveitamos mal os sábados. Tomamo-los por dias indicados para a realização de tarefas lúdicas ou domésticas. No verão, corremos para a praia, arrastando os corpos através da densa cortina de calor. Cansamo-nos e, no dia seguinte, estamos fatigados. Corre, neste sábado, uma brisa que vai sustentando melifluamente a cortina da janela do quarto, para depois varrer o calor do corpo, como uma carícia. Ao sentir esse sopro, lembrei-me das cenas de praia no Estrangeiro, de Camus, que, não obstante as circunstâncias, me deu muitos sábados semelhantes.

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da humildade calculada

por jorge c., em 08.08.14

Não é a virtude do trabalho que faz os homens de origens humildes subir a pulso - utilizando expressões que lhes são tão queridas -  mas, lá está, o seu narcisismo.

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o problema dos universais

por jorge c., em 07.08.14

Há palavras que nos monopolizam os dias. Aparecem a propósito de coisas insignificantes para darem corpo às ideias que estão, muitas vezes, órfãs de vocabulário. E podem ser palavras simples, das quais nos esquecemos por falta de uso, por não fazerem o nosso género. É importante que nos recordemos das palavras e voltemos ao Problema dos Universais e, tal como Ockham, que compreendamos o mundo através dos outros e saibamos nomeá-lo correctamente. A palavra do dia é narcisismo. Sobre a palavra narcisismo e a sua extraordinária amplitude devemos ser cautelosos. É importante que o significado amplo, ou a abrangência, não nos monopolizem de tal modo que acabemos numa obsessão vertiginosa, o que - como diria Kurt Cobain - não significa que não estejamos a ver bem o cenário. Para quê, então, a lucidez perante as palavras? Para quê deixar que nos consumam as horas com a pontaria inconsequente do seu significado?

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do carácter e da empatia

por jorge c., em 04.08.14

Viver a vida sem dramatismo implica fazer opções e correr riscos no agrado dos outros, para quem a nossa capacidade em viver com as adversidades é entendida como desleixo ou egoísmo.

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com um brilhozinho nos olhos

por jorge c., em 02.08.14

Fazer um amigo é ter a certeza que jamais olharemos os detalhes do mundo sozinhos.

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