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campino negro - III parte (final)

por jorge c., em 04.11.14

Apesar de um breve susto, não ficou surpreendido. Na verdade, já esperava ser confrontado pelo fenómeno obscuro que parecia estar na moda por aqueles lados. Ergueu ligeiramente o corpo e ficou a apreciar o cenário: um cavalo negro montado por um homem trajado de campino, de rosto indefinido e sombrio, ambos com uns olhos prontos a serem nomeados para a categoria de demónios do ano, que acabariam por condizer com o ferro da casa bordado na jaqueta. Tudo a arder, em volta, como uma aura dantesca que abre as portas para as profundezas da escuridão eterna. No que diz respeito a efeitos visuais, a coisa era muito realista, e digna do melhor cinema que se faz lá fora. Estavam todos de parabéns!

Quando se preparava para acender a luz do candeeiro (não que fosse necessário), o campino apontou-lhe a vara ao ombro, carregando ligeiramente para o devolver à posição inicial. Sentado na cama, António tentava perceber o que se estava a passar mas, do outro lado não havia qualquer reacção.

- Ouça, podemos chegar aqui a um acordo...

Tentou de tudo um pouco. Nem uma, nem duas. Nada. Começou a inquietar-se, a ficar impaciente e descontrolado. Invadia-o, agora, uma ligeira sensação de medo. A criatura era impenetrável. Desesperou e, já de joelhos, resignou-se ao seu fim. Foi então que começou a confessar-se, assumindo vigarices e aldrabices como se estivesse perante o juízo final, mas sem sentir qualquer arrependimento, apenas para ver se ainda lhe calhava algum indulto pela honestidade demonstrada. Então, por detrás do cavalo, surgia uma nova figura. Lentamente, vinda dos confins do universo, a imagem de uma nova criatura, numa cadeira de rodas, aproximava-se até acabar por estacionar a viatura ao lado do cavalinho. Estava ali montado um belo espectáculo, sim senhor!

Quando as chamas iluminaram, por fim, a nova visita, reconheceu-lhe as feições e o género austero e aristocrata de outros serões, à mesa do grande salão onde toda a família se reunia como que num ritual sagrado. Ao pé da avó Amélia viviam em regime de elevação e exigência vitoriana, para que se formassem homens e mulheres de carácter. No seu caso, o resultado não terá sido o desejado. E agora, ali estava a velha outra vez, prontinha para mandá-lo para o inferno. Por momentos, enquanto a cena não avançava, chegou a pensar que tudo isto poderia ser transformado numa oportunidade de negócio; que toda esta coisa dos fantasmas seria um golpe de marketing nunca visto e pessoas de todo o mundo viriam para confirmar com os seus próprios olhos. Ficaria rico em dois tempos, sem precisar do cobarde do Berto. Enquanto tentava encontrar forma de acalmar os ânimos, o silêncio rompeu-se e o animal largou uma grande bosta. O quarto do fidalgo ficou impregnado com o cheiro da natureza e, então, a velha falou:

- Se o menino está, neste momento, a sentir o cheiro dos excrementos do cavalo, então é porque não está a sonhar. Como deverá saber pela educação que o seu paizinho lhe concedeu, o olfacto não tem memória, logo, nunca poderia sonhar com um cheiro, por mais intenso que ele fosse. Os sonhos são feitos de memória - do passado, do presente e do futuro. Na verdade, a memória é algo que também não o parece preocupar e, por conseguinte, é assim que chegamos a esta escatológica realidade. 

- Muito bem, ouça...

- Silêncio! Falará quando assim eu entender. Desde criança que o seu comportamento e as linhas que traçaram o seu carácter se desviaram da nobre matriz cultivada pela família ao longo das gerações que a compuseram. Talvez nunca tenha entendido que uma herança é de matéria incorpórea e que o seu peso significa um sacrifício individual por algo muito maior do que nós. Nestas terras não corre apenas o nosso sangue, porquanto muitas mulheres e homens nelas trabalharam e por elas sofreram, na esperança da felicidade. Delas não sois digno. Restam-lhe, assim, poucas horas para arrumar as suas coisas e partir. Caso tal não aconteça, todas as suas noites terão a visita deste fiel maioral - guardião do tempo e da memória - que não lhe permitirá um momento de paz.

- Mas, Senhora Minha Avó...

 Como a permissão para se defender não lhe fora dada, o campino avançou sobre ele, ainda com o rosto indefinido, mas com uns dentes lancinantes como um Cérbero. O menino teve medo. Depois de três ou quatro rugidos, atirou-lhe uma segunda vara e começaram os dois a dançar o fandango. Como a habilidade do pobre diabo do Mello para o duelo era menos que razoável, um raio disparado da vara do Campino Negro abriu um buraco no soalho até às profundezas do derradeiro abismo, deixando o desgraçado suspenso pelas ceroulas. Era o fim.

Quando despertou já o quarto tinha regressado à normalidade. Olhou em volta, assustado, e nada, mas ainda conseguia sentir o cheiro do inferno. Vestiu-se à pressa e saiu miserável. Era Domingo.

Não pense o leitor que a Herdade de Montes Claros conheceu, depois de tudo isto, dias muito sombrios ou muito felizes. Como em tudo, os dias foram passando e, um por um, lá se foi reconstruíndo. Quando Isabel chegou ao solar, esperava-a Pedro Inocêncio, seu amigo de infância que agora lhe entregava uma carta perdida, deixada por seu pai, o menino Eduardinho. Era uma descrição bela da lezíria e um chamamento da sua gente, para que não a abandonasse à mercê da sua sorte. Olhou para Pedro e disse-lhe num tom melífluo:

- Vai ficar tudo bem.

 Nessa noite houve sexo. 

 

FIM 

 

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