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notas da realidade ficcionada na lezíria
Pelas duas da tarde o sol escondera-se por detrás das nuvens, deixando o frio à solta pelas ruas vazias, no meio do comércio encerrado para férias de Carnaval ou à espera de nova gerência, num silêncio apocalíptico. Enfiadas em fatiotas com um brilho sintético e áspero, as crianças seguem animadas, vestidas de ícone da moda ou com trajes consagrados pelo tempo, subvertendo a autenticidade do disfarce com meias de lã, sapatos de fivela e camisolas interiores para as proteger do frio de Fevereiro. Seguem para o desfile que se vai compondo timidamente com meia dúzia de atrelados puxados por tractores, transportando raparigas semi-nuas que dançam arrepiadas numa folia calculada, numa irreverência forçada pelo som desadequado de um Trio Eléctrico, sem uma alegoria suficiente que lhes devolva o espírito. Vai passar o Carnaval dos conformados, dos sem imaginação, daqueles a quem tiraram o brilho original, atirados para uma eterna quarta-feira de cinzas.
Numa das mais amenas tardes de Maio, sem que as sombras provocassem um desses arrepios desconfortáveis, Sam e Julia caminharam pelas vielas da cidade com a mesma frescura dos vinte anos: as palavras trocadas como uma sinfonia de Ellington, os gestos fluidos de ambos a convergir numa dança, como se os seus corpos se tocassem, sem se tocar. E nesse mesmo compasso, olharam o céu sobre as casas da cidade e viram o dia passar como um fôlego infinito.