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notas da realidade ficcionada na lezíria
Ficámos órfãos de poetas. Restam-nos os livros e os versos latentes que são como uma adição da influência que se perpetua no caminho da nuca para a língua. Perdemos a certeza do corpo presente que guarda a dignidade do mundo - as barbas, os gatos, os olhos das coisas intangíveis, isolados do excesso de tangibilidade de todas as outras coisas. Ficamos agora à superfície, a boiar sobre os abismos, ignorando as suas profundezas e o fogo que nasce dentro da Terra. Enterramo-nos vivos.
A flor rebentou nas ameixoeiras nos primeiros dias de calor, como que debutando a Primavera. Mas logo regressou o frio e o céu cobriu-se de uma sombra tão inoportunamente cinzenta que os dias ficaram logo mais curtos e os ossos de novo gelados. À flor da pele tantas outras nuvens, quando por dentro nada floriu, só esta imensa angústia em mangas de camisa, sem um casaquinho pelas costas, exposta assim ao Inverno que ainda tinha algo a acrescentar. Já não vale a pena fazer planos.
Na Borda d'Àgua a realidade está deprimida. Há umas décadas, o rio ainda dava para a sobrevivência, a Lezíria servia de pasto para o gado bravo de uma dezena de ganadarias e, à cidade, chamavam-lhe a Sevilha Portuguesa. As saudades desse tempo inventam memórias tão conservadoras quanto o pessimismo dos seus cultores. Tirando o primeiro cheiro da Primavera, não restam muitos motivos para a felicidade quotidiana enquanto durar o Inverno.