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notas da realidade ficcionada na lezíria
Enviei uma carta da qual jamais me poderei arrepender. Quando a iniciei, já poucas dúvidas me restavam sobre a sua oportunidade e, no momento do envio, as certezas eram inequívocas. Durante essa tarde tomei um banho no tanque do quintal e voltei a pensar nela. Era uma carta como todas as outras: tinha morada e data; o tom inicial era cordato e correspondia às melhores práticas protocolares; o texto obedecia às mais elementares regras da lógica, da coerência, e a estrutura gramatical era, na melhor das opiniões, irrepreensível. Eram seis da tarde. Por aquela hora a carta seguira o seu rumo habitual; pela manhã sairia do posto dos correios, onde um funcionário experiente e zeloso entregaria a correspondência ao carteiro que, por sua vez, atravessaria a cidade e a colocaria na morada do destinatário, a qual eu conferira as vezes necessárias de modo a evitar as maçadas do extravio e das moradas inexistentes. Coloquei, aliás, o código postal completo, pois a referência dos últimos três números é fundamental para a eficácia do processo, segundo aquilo que nos é dito nos serviços e, nestas coisas, não devemos ser nós a provocar o problema já que o interesse não é senão nosso. O cumprimento de todas estas regras acabaria por me despertar um sentimento de satisfação serena. Encostei a cabeça na beira do tanque, fechei os olhos e fiquei a ouvir os pássaros a anunciar o crepúsculo. A satisfação transformou-se num imenso bem-estar e acabei por adormecer ao som de junho, sem sequer esperar que a carta chegasse e pudesse, então, ler aquilo que me havia escrito a mim mesmo.