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notas da realidade ficcionada na lezíria
Não sei se é a natureza das palavras que convoca o desentendimento, se somos nós que provocamos a sua ambiguidade, conduzindo as conversas ao fracasso. Cada frase dita, um prostíbulo de palavras que já nem a semântica salva. Demasiadas palavras, longas e excessivas frases, confusas, nervosas. Do outro lado, o outro recebe-as como balas, imaginando primeiras e segundas intenções, até que a subjectividade nos separe. Para sempre. Há tantas palavras como sensibilidades. Já pouco medimos umas e outras e, avançando como quem avança pelo meio de um acidente dessas corridas de carros americanos, seguimos perdidos e desentendidos na imensidão do universo. Reparo agora no dramatismo e na gravidade ridícula das minhas palavras e desejo nunca as ter dito.
Num outono que me parece já algo distante, entrei num pequeno cinema de bairro para ver a Sonata de Outono. Estava particularmente lúcido apesar da chuva, da gabardine encharcada, das despesas do amor e da segurança social. Bergman em Bergman. Outono no outono. Todos os paralelismos do mundo numa pequena sala cheia de clientes de ciclos, aos círculos, de clientes de sonatas diárias, de prelúdios infinitamente tristes, de tristezas infinitamente diárias em prelúdio, aos círculos, como aquela expressão infinitamente circular de Charlotte enquanto ouve Eva a tocar um prelúdio de Chopin, essa expressão que era imensa e invasiva e que acabava por nos agoniar o peito. Quando saí não era mais lúcido. Desci a rua e entrei no carro seco apesar da chuva, da gabardine encharcada e do rosto perdido de Ingrid Bergman.