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notas da realidade ficcionada na lezíria
Depois da queda, levantar de novo, agora encharcado. Os outros já lá vão, um pouco mais à frente. Ali estão. O corpo já se vai habituando a não se erguer demasiado. O que serão aqueles latidos ao longe? Alerta, sempre alerta. O pior já passou. Mais arame, menos arame, vai ficar tudo bem. Aya também ficou para trás. Queixa-se de um tornozelo. Sinto-lhe o sangue e o suor onde antes era só pele, seda e jasmim. Temos de continuar. É preciso evitar a luz. Cada vez menos invisíveis. Continuemos. Limpo-lhe o sangue e guardo o lenço. Dentro de duas horas Bassel estará à nossa espera na outra margem do rio para nos conduzir até ao nosso contacto do sul. Teremos de confiar. Os latidos regressam. Temos de confiar. Precisamos de confiar. Um homem que nos deu comida na última paragem contou-nos que, há umas semanas, apanharam uns tipos do norte que se faziam passar por voluntários de uma organização qualquer. Levaram um grupo para uma zona mais montanhosa e fizeram-nos desaparecer. Ninguém sabe deles. Bassel diz que é mentira, que inventam coisas por causa do medo, que preferem ver o nosso medo e que isso diminui o seu próprio medo. Somos lobos de matilhas diferentes. Uns mais cães do que outros. Não penses nisso agora, não te ergas demasiado, não te insurjas, é preciso continuar. Agora é uma criança a chorar. Uma vontade indomável de a esganar apodera-se de mim. Temos de sobreviver. É preciso continuar para sobreviver. Não te ergas demasiado, não penses na criança. Vai ficar tudo bem. Já falta pouco. Ainda falta tanto.
O verão desparece pela manhã. Um nevoeiro abafado invade o quarto, a intimidade dos lençóis ainda quentes e o reflexo de um rapaz e de uma rapariga sonolentos no espelho. O cheiro do monóxido de carbono ameaça o dia. Entre a cidade e o céu, paredes de betão e um ruído exasperante de embalar, como num disco dos Massive Attack.