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breves notas sobre a cultura

por jorge c., em 18.09.15

José Gil falava há uns dias na rádio sobre a massificação da cultura e da obra de arte. Na breve passagem que consegui ouvir, o filósofo narrava um episódio a que assistiu num museu, em que dois indivíduos, jovens, passavam pelas obras para assinalar com uma fotografia e dizer "este já está". Luís Naves, num texto de magnífica ira, escreve que "em vez de emoções, as pessoas experimentam obsessivamente novas sensações, tudo à flor da pele, pois estamos na era do explícito e do efémero." Estaremos a passar por um período de desculturação? Ou seja, um período em que o modelo social se inverteu de tal forma que se assiste a uma perda do valor cultural e a uma preponderância do produto de entretenimento que, por sua vez, irá gerar uma sociedade cada vez menos exigente. Esta desculturação implicaria uma quebra na qualidade das elites e da forma do seu mediatismo ou, até mesmo, uma alteração radical das elites e do modelo social proposto pelos meios de comunicação. Não podemos, aqui, ignorar o papel da escola e do serviço público de rádio e televisão, bem como de todo o jornalismo. Não quero dizer com isto que um desmantelamento do fenómeno cultural, que eleva o conhecimento das sociedades, seja provocado. Parece-me mais que se trata de uma desvalorização progressiva, na tentativa de adaptar linguagens à tecnologia. O instrumento tornou-se o fim. A desculturação seria essa subversão.

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volta ao mundo em três memórias

por jorge c., em 18.09.15

Sayid voltou a perturbar-me o sono. Desta vez apareceu noutro tempo, rodeado por uma dessas felicidades raras da vida. Depois disso, lembro-me apenas de o ver deitado numa camarata, acompanhado de umas dezenas de outros homens, todos vestidos de igual. Ouvia-se música e o som inequívoco de camiões. Ouviu-se também um disparo e um corpo apareceu caído junto de uma cerca. Acordei sem saber se a minha personagem teria morrido. A história de Sayid havia terminado, mas agora surgia algo novo, já sem os outros, num outro cenário. Um sonho tão estranho como aterrador. O despertador ainda não tinha tocado. Talvez aqueles quinze minutos restantes pudessem ter sido fundamentais. Quinze minutos é uma vida nos sonhos. Levantei-me e saí para apanhar o avião para Lisboa, com o possível corpo de Sayid na mente e o trago amargo da cerveja da noite anterior a entupir-me toda a zona respiratória. Voltei a adormecer durante o voo mas julgo não ter sonhado mais. No táxi, num francês enferrujado, o motorista confessa estar triste com o que se passa na Europa. O tema propaga-se por toda a parte como um grande terramoto. É a favor. A favor? Sim, a favor. Há quem seja contra. Contra o quê? Toda esta história de refugiados e migrantes e tragédias. Migrações trágicas. Sabe bem o que isso é. Em 75 veio para Portugal para fugir da morte certa. Não era um regresso, mas antes uma vida nova, um outro cenário. Também havia quem fosse contra. Emocionou-se e forçou-me ao silêncio. A luz de Lisboa preenchia o espaço com a compaixão possível, enquanto o taxímetro marcava a passagem do tempo numa luta clássica entre a melancolia e a urgência do fim do dia. Lembrei-me de Julio Cortázar e da sua breve história porteña. Às vezes o mundo cabe todo numa pequena viagem nos transportes públicos.

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las calles*

por jorge c., em 14.09.15

Inácio está numa segunda-feira perpétua, a olhar para os navios que chegam à doca, desafiando o horizonte e as possibilidades. O que estará para além do mar? Os olhos curiosos e sonolentos, os pés acariciados pela água morna que banha a central térmica Costanera, as mãos no chão a suportar o tronco, o corpo curioso e sonolento. Um homem aproxima-se e manda-o sair dali. "Fascista!", responde o rapaz, "o mar é de todos!" e sai disparado em direcção a Boca; em frente ao estádio simula um remate e festeja o golo e por toda a cidade se anucia e celebra esse outono porteño e um bandoneón toca alegremente melancólico e, então, nada muda. Inácio regressa a casa. A escola ainda não começou. O melhor será esperar pelos outros. Pega num livro e lê:

 

"Las calles de Buenos Aires
ya son mi entraña.
No las ávidas calles,
incómodas de turba y ajetreo,
sino las calles desganadas del barrio,
casi invisibles de habituales,
enternecidas de penumbra y de ocaso
y aquellas más afuera
ajenas de árboles piadosos
donde austeras casitas apenas se aventuran,
abrumadas por inmortales distancias,
a perderse en la honda visión
de cielo y llanura.
Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan,
únicas ante Dios y en el tiempo
y sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado - y son también la patria - las calles;
ojalá en los versos que trazo
estén esas banderas."

 

Depois, estendeu-se sobre a cama e adormeceu antes que o acordassem. 

 

*poema de Jorge Luís Borges

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11

por jorge c., em 11.09.15

Uma visão turva da memória imprecisa, indefinida. Talvez estivesse nevoeiro. O televisor a preto e branco desligado. Depois, um telefonema: o mundo está a cair. Em Santiago, as últimas palavras de Allende na rádio a preto e branco: "El pueblo debe defenderse, pero no sacrificarse. El pueblo no debe dejarse arrasar ni acribillar, pero tampoco puede humillarse." Aviões por toda a parte, um ruído ensurdecedor. Acende-se o televisor a preto e branco e os aviões embatem nas torres. Updike escreveria mais tarde "the false intimacy of television", no seu apartamento em Brooklyn, a ver o fumo sobre a cidade. Um homem voa. Talvez Allende "El pueblo debe defenderse, pero no sacrificarse". Outros corpos caem como lágrimas do céu. ¡Viva Chile! "de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor." A humanidade toda, de Santiago a Nova Iorque, nós atrás de um televisor a preto e branco, os corpos dos outros, outro sangue derramado, a humanidade toda, impotente, sem esperança. "de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre." Os dias e os anos passaram. Reabriram-se avenidas. Vieram as cores, as fotografias de Brooklyn Heights e de Santiago. A falsa intimidade da internet. 

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o céu azul ficará

por jorge c., em 08.09.15

Quando se tem 14 anos todas as ruas são tristes. Nada resulta. Volta-se para casa com o mundo inteiro a doer e, por vezes, só no quarto encontramos o isolamento pacificador. Ainda assim, fica-se com uma sensação de desconforto, uma inquietação que não se consegue explicar. Mas ali, longe das perguntas e das solicitações, pode estar a salvação. Fecha-te no quarto, liga o teu som e ouve sempre - sempre - os Xutos. Vais ver, o sol brilhará.

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um mundo-cão

por jorge c., em 04.09.15

Sentado numa charmosa esplanada na rue des Abesses, abro sem entusiasmo o Le Figaro, mas não consigo deixar de reparar numa fotografia de dois indivíduos a tentar passar por baixo de uma rede de arame farpado. A imagem tira-me o apetite e resolvo concentrar-me no pequeno grupo que se encontra na mesa do lado: um homem nos seus trinta e poucos, incrivelmente parecido em tudo com Serge Gainsbourg, acompanhado por duas amigas, um pouco mais novas e enérgicas. Enquanto as duas raparigas vão esgrimindo frases espúrias, num duelo de sensibilidades, num contra-relógio pela mais adequada e correcta das ideias conformes ao cânone, o rapaz vai olhando no infinito, fumando em câmara-lenta o cigarro da grande urbanidade. Depois, com um sentido de oportunidade admirável, interrompe-as com comentários despectivos, quase assassinos, que elas recebem com deslumbramento. Não parecem estar autorizadas a utilizar os telemóveis na presença desta ilustre luminária de Montmartre, limitando-se a comentar um artigo no Libération onde o colunista cogita sobre a importância das palavras "refugiado", "migrante", "humanismo", com a assertividade dos profissionais da opinião. A mise-en-scéne fascina-me. Olho-a com uma ternura cínica, ou talvez só com cinismo, e acabo por me rever naquele sósia de Gainsbourg que todos os dias se senta na esplanada do Le Sancerre a pavonear uma atitude snob. E então somos dois snobs na mesma esplanada da rue des Abesses, desprezando as trivialidades das raparigas e das colunas de opinião, desprezando toda a gente que não viu as perseidas da razão e da humanidade, admirados pelo deslumbramento de duas tontinhas que só querem ser úteis à vida, não sabendo bem como. E então já somos quatro, já somos um bistrot inteiro, todo um bairro, uma cidade e um país a tentar ser úteis à vida sem saber como, à procura em desespero, sem saber nada. E então invejo tudo isto. Invejo a admiração pelo Gainsbourg, a inocência das tontinhas, a esplanada do Le Sancerre, o colunista do Libération e um outro do Figaro, o homem que sai do Grenier à Pain com o lanche debaixo do braço, os dois activistas que distribuem panfletos sobre a crise em Calais e sobre o livre-trânsito do grande capital, no outro lado da rua, a família que se apressa para entrar numa pequena sala de teatro de Montmartre e todo este conforto sem culpa que só o cosmopolitanismo consegue oferecer. Invejo a sensação de estar vivo de Sayid, os dilemas de Bassel e o pragmatismo sem fronteiras de Rasul. Certa noite, sonhei com estes homens, atormentado pela culpa, pela impotência e pelo cinismo. Imaginei-lhes o rosto, a pele e o nervo. Mas o meu incómodo era tão cómodo como o de todos os outros que, tal como eu, perdem o apetite com fotografias nos jornais, entre dois copos de vinho e meio maço de cigarros. Pouco antes de chegar a casa, reparei na carruagem de fim-de-tarde com destino a La Défense. Um mundo inteiro lá dentro. Todos os rostos do mundo fechados no seu mundo, como um cão que morde a própria cauda para acabar com a sua inquietação. Vi o meu reflexo na janela e lá estava eu acompanhado por todos esses cães, a morder a minha cauda como se fosse acabar com todas as inquietações do mundo, às voltas. Entrei em casa, deitei-me e não pensei em mais nada.

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um mistério

por jorge c., em 02.09.15

Sayid salvou-me o dia. Faço o caminho contrário à história da sua chegada, em busca da fonte. Falou-me de um homem chamado Bassel. É ele a chave esclarecida que procuro, entre o drama desta gente que espera na vertigem da vida, os meandros do tráfico de pessoas e a origem da tragédia. Sentado junto ao canal, cansado e resignado, o sírio traz no rosto todos esses mistérios - a verdade sobre o mundo. Não o posso ajudar mais. Não posso levá-lo para casa, como quem resgata um cachorrito no canil para se sentir em comunhão com o cosmos. Dois homens olham-me com desconfiança e segredam entre si, deixando bem claro que é de mim que estão a falar. Não lhes faço a desfeita e afasto-me. Procuro mais um testemunho. Encontro um homem do Conselho Belga para os Refugiados, não muito afável. Diz-me umas quantas banalidades e arranja uma desculpa para sair dali. Não parece haver ninguém aqui que não tenha um ar comprometido. Talvez Bassel me ajude a compreender. Irei encontrá-lo em Paris. Prepara-se para embarcar para Berlim, onde a família o aguarda.

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a rede

por jorge c., em 01.09.15

- Se não fosse tão feia, saltava-lhe em cima.

- A tua irmã também é feia e já meia Paris lhe saltou em cima.

- És um cão de merda, Rasul. Já te disse que não te admito que fales da minha irmã.

- Pois sim. Despacha-te mas é a limpar isso e vamos embora. Não fosse esse teu apetite voraz, não tínhamos de estar sempre a mudar de sítio e a justificar estes incidentes ao Belga.

- É um paliativo. Elas vão morrer e vão...

- Um paliativo é quando é consentido, meu animal. Se o gajo nos fecha a porta, a seguir abrem-nos uma cela. E antes de lá entrarmos, apagam-nos. E desliga-me essa merda dessa música.

- Assassin de la police! Uh! Uh!

Dois cadáveres adiados precipitavam-se, agora, para bem longe dali. Apesar de tudo, Johnny mexia-se bem na rede e Rasul ainda ia precisar dele antes de regressar ao norte. Era preciso limpar o desleixo de Bassel com o primo da namoradinha. Depois disso, teria de recuperar o dinheiro perdido na última operação e reconquistar a confiança do Belga. Pela primeira vez, tinha medo. Metera-se demasiado no assunto. Ao início parecia uma coisa simples - fazer meia-dúzia de contactos, arranjar informações, vender informações. Nem precisava de sair da cidade. Tudo sob controlo, até ao dia em que mais gente quis ganhar com isto e começaram a apertar com ele. Agora eram agentes oficiosos de órgãos oficiais: políticos comprometidos; polícia facilitadora ou dificultadora, conforme a recompensa; organizações internacionais; o Belga; e Bassel que, ao ignorar todo este novelo, achava-se Moisés, um herói do seu tempo, investido por uma moral superior que justificaria todos os seus pecados. Por outro lado, havia Johnny, um albanês mercenário a quem os nacionalistas franceses pagavam para criar cenários de criminalidade, ou a quem os grupos terroristas recorriam para recrutar miúdos nos bairros de Paris. Era através desses contactos que Johnny conseguia informações para passar gente nas fronteiras e, por vezes, mais além. Mas, para isso, cobrava um pouco mais, reivindicando os corpos já sem força de mulheres desfeitas pelo terror. "C'est la vie", desdramatizava. Havia que regressar a Calais, pagar ao Belga e pirar-se para Tarifa, destino ao qual acabaria por nunca chegar. 

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