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notas da realidade ficcionada na lezíria
Haydn a caminho da Vala, pelo meio dos ciprestes e da indústria pesada, num desses dias tépidos de outono. Mesmo sem se ver o rio, percebe-se pelas figuras que vão passando a pé pela rua da estrada, como bem lhe chamou Álvaro Domingues, que é domingo na borda d'água. Um grupo de ciclistas atravessa o cruzamento do Carregado e um outro, de peregrinos, segue a bom ritmo pelo caminho mariano. Na estrada para a Azambuja, uma carroça de ciganos passa em frente ao centro comercial e um Mercedes com uma família tradicional entra penitentemente no parque de estacionamento. Parou de chover e Haydn continua a tocar para todos. Não há nada mais plural e universal do que um quarteto de cordas num domingo na borda d'água.
De todos os despertares, o cheiro do café das velhas logo pela manhã é o mais estimulante. E quando a temperatura lá fora baixa e as paredes da casa arrefecem, sentem-se os ossos mais rijos, saltando-se da cama como uma mola em direcção ao dia. "Come qualquer coisa, rapaz!" Não como nada, não há tempo. E agora a rua é uma rampa de neve, a toda a velocidade, sem hesitações, como se a calçada não existisse e a descida fosse um mergulho perpétuo de um esquiador num movimento contínuo e magnífico. Estala o primeiro foguete, o coração dispara e as pernas ganham uma força extraordinária. Quase a esbarrar na tronqueira, vejo o maioral real passar na frente, seguindo-se um outro cuja vara aponta ao primeiro toiro e mantém tudo encabrestado. Os miúdos gritam "toiro! toiro!" e os homens que os esperavam no meio da rua precipitam-se para o resto das tronqueiras e para trás dos carros que ficaram esquecidos na noite anterior. O cheiro de Outubro fica ali embrulhado na humidade da areia e uma melancolia parva permanece nos espíritos. Nas ruas de Vila Franca, esperam-se toiros como quem espera pela felicidade eterna.