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notas da realidade ficcionada na lezíria
Meia-estação. Sempre a meia-estação. Lembro-me dos domingos de meia-estação, o cheiro das velas na igreja, o incenso que julgava afastar o cheiro do suor quente-e-frio dos corpos que derretiam como cera, debaixo do sol da eucaristia, e depois gelavam com a sombra das nuvens saudosistas. Pela tarde, as ruas ficavam vazias e sobravam os restos do mundo embrulhados em sobretudos de fazenda, como zombies imunes à temperatura, e duas ou três tendas a vender cavacas e bugigangas na esperança de que todos os domingos fossem como em Jesus Cristo Superstar. Achei sempre que essa relação entre a missa dominical, os indolentes e a venda ambulante era um encontro cósmico de toda a decadência, abençoado pela temperatura falsamente amena da meia-estação e pela música de Nelson Ned. Mais tarde, quando a indolência me venceu, dei por mim a subir os montes num domingo à tarde, o sol a derreter a pele como se fosse a cera das mezinhas, os insectos, a terra seca e o pó a invadir as narinas já ressequidas do tabaco e do brandy. Foi outro desespero de tardes iguais, outro calor, a mesma estação, nem carne nem peixe, o compasso marcado pelos passos enterrados e o romper das silvas. Do chão parecia que se levantavam os mortos para completar o cenário de inferno brando. Não me recordo de outras visões. Ao fim do dia, quando regressava ao bairro, com o frio, o pânico da meia-estação encerrava-se no rosto pálido de Sónia, como numa balada de Violent Femmes.