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notas da realidade ficcionada na lezíria
No princípio era a verba. E então, entre a utilidade e o prazer, escolheram a primeira porque a segunda não era tangível. O prazer tornou-se deboche e os hedonistas parasitas. Todas as coisas espontâneas padronizaram-se e institucionalizou-se a noite e as manhãs ficaram artificiais e as salas dos restaurantes cheias de memórias inventadas pelo patriotismo romântico e as esplanadas violadas com a música que vende a mesma estética do prazer e a tarde a ter que ser produtiva. Quando a cultura do mundo morrer, será por decreto da lei do mercado, das novas tendências do cliente ou pelas regras de higiene e segurança do emprego. O cliente, que somos nós, é esse ser caprichoso que finge o que sente e que por preguiça deixou de gozar a vida.
Vou lendo, por aí, histórias de gente que se entrenha nas paredes do mundo. Ficções que acontecem à realidade. Penso nelas com uma inveja carinhosa. Queria escrevê-las, inventá-las, mas elas existem e foram contadas. Agora só me restam estas linhas trôpegas.
Puristas, românticos de quaisquer construções, sempre os houve. Inventaram o nacionalismo, o autêntico, o verdadeiro, o original. O puro, lá está. Arrastam consigo, através da humanidade, os limites da imaginação. São os escravos do ressentimento, os fiéis guardiões da velha caverna. Não lhes devemos absolutamente nada.
Se houver uma geração x em Portugal, ela é filha de uma inquietação sonâmbula que andou pelas ruas durante duas décadas, sem saber muito bem o que escolher. Se houver uma banda sonora para essa geração, ela tem letras de Rui Reininho.
Já mal se recordam dos dias como eles eram há quinze anos. Aquela discussão no concerto dos Guano Apes, as férias em Milfontes, os planos para viver no centro da cidade num T0 sempre cheio de amigos, copos de vinho e música do agrado de ambos. O longo namoro deu em casório e a grande estratégia para a felicidade conjugal limitou-se, afinal, ao salário de seiscentos euros, já com os descontos, ao T2 nos subúrbios, a preço razoável, às aulas de Zumba e aos dias de jogo com direito a tolerância de ponto. Aos fins-de-semana é a catequese da miúda ou são os jogos do rapaz pequeno. Às vezes lá dá para uma jantarada no Mister Picanha e uma saída para um sítio onde dê para dançar, acabando a noite pela uma da manhã no Sabor a Recife - o mais próximo de umas tão desejadas férias no Brasil. Se pudessem voltar atrás, Carla e Bruno não mudariam muita coisa. Na verdade, nem pensaram muito nisso.
Não há nada que inquiete mais a existência do que a incerteza sobre o que os outros pensam de nós. Podemos fugir, inventar uma retórica de auto-confiança, defender o individualismo ou entrar numa personagem que nos pareça mais conveniente. A verdade é que todos nos preocupamos. O que pensarão eles sobre mim? A dúvida é existencial. Toda a dúvida é existencial. É ela que me assalta quando vejo que os amigos não me visitam, que não têm curiosidade sobre o mundo que me rodeia, que não manifestam interesse pela minha cultura. Ao mesmo tempo, os amigos mostram-se incomodados pela a minha ausência. "Estás diferente", dizem. Eu, que aqui me encontro arredado do mundo, sem teatro, cinema e poesia, com pouca música e um difícil acesso a tantas outras coisas; eu, que vivo com pouco sem me queixar, apesar deste queixume; eu, que abandonei a casa e as gentes; eu, que sinto a falta de todas as coisas, como uma nostalgia perpétua. A que se deverá tal crueldade dos amigos? Isso, à necessidade que têm de ser gostados. Todos têm. Temos. Não me cobrem.