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as férias de sardinha

por jorge c., em 26.07.16

- Quinze dias de férias! - exclamou num alívio tal que, ao recostar-se na cadeira, tombou, batendo com a cabeça no aparador da sala e derrubando uma jarra que lhes fora oferecida por uma prima afastada no dia do casamento. Pronto, estavam as férias feitas. Resignou-se com o facto de nas próximas duas semanas as suas manhãs começarem invariavelmente com a lembrança da tragédia que foi ter quebrado aquela jarra, de como é um irresponsável que não valoriza as coisas, de como a prima lhe era querida, apesar das distâncias, e lhes comprou aquela obra de arte por considerar que tinha tudo a ver com ela e que aquela era a única forma que tinha de se recordar da família que havia abandonado para se dedicar a um marido incompetente, inútil e desinteressante. Nem tudo era mentira.

Quando Sardinha casou, tinha começado a trabalhar na propaganda médica havia pouco mais de um ano, com direito a carro e a cartão de crédito para os almoços e jantares de negócios que acabariam por nunca acontecer devido à sua timidez, apesar de o chefe acreditar que tudo aquilo se devia mais ao facto de ele ser uma pessoa absolutamente desinteressante, inoportuna e, por consequência, inútil em qualquer empresa. Talvez tenha sido por isso que mudou de ramo, nunca afastando a convicção de que teria talento para as vendas. E com isto tudo já eram doze anos nos seguros. Muita gente passou por ali; entravam, saíam, e ele sempre lá, sempre a trabalhar; férias, nem vê-las. Chegava, por isso, a altura de gozar quinze dias, que seriam agora assombrados pela tragédia da jarra.

Portanto, se descontasse os telefonemas que iria receber, o massacre diário da jarra, a jardinagem e as compras, estaríamos a falar de um valor líquido de três dias de férias. Não desmoralizou. Talvez um bocadinho. Talvez tenha ficado a pensar que se fosse rico é que eles iam ver o que eram férias, na Polinésia Francesa, como um cliente que lhe contou que na Polinésia Francesa até uma tipa com um abanico a dar-a-dar para suavizar o calor havia; a água, transparente; nunca precisaria de se mexer para fazer o que quer que fosse excepto, claro, se a tipa do abanico quisesse brincar aos colonizadores, que era algo que também se podia arranjar. Quando um tipo tem dinheiro, tudo se arranja. E em vez de passar umas férias inteiras a podar arbustos, a aparar relva e a recolher pinhas e folhas de loureiro, passaria todas as tardes como se fossem aqueles sunsets onde os ricalhaços aparecem a beber gins e outras bebidas cujo nome agora não se recordava mas que o cunhado, que era um purista, sabia de trás para a frente. Ele é que lhe dava os conselhos: "Aquilo é uma maravilha. Mas não são aqueles patés manhosos do supermercado. É foie gras a sério, francês. O da Rússia também é muito bom. E bebes um ginzinho a seguir, com zimbro, pimenta rosa e hortelã. Vais ver como não queres outra coisa." Há gente que sabe viver, pensava. O cunhado, por exemplo. Admirava-o tanto que era raro não começar as frases com a formulação "o meu cunhado", o que depois, pelo excesso, acabaria por ser motivo de comentários menos simpáticos dos colegas. 

Foi precisamente o cunhado que os convenceu a arrendar uma casa na Malveira para passarem as férias e os fins-de-semana. Claro que fins-de-semana era para esquecer. É a bola do puto, a ginástica da miúda, o negócio que não dorme nem tira férias, o Benfica... enfim, ficava difícil. Quando lá iam, eram dois dias a limpar a casa e o jardim e na segunda-feira ninguém ia trabalhar por ele. Por isso, quinze dias de férias vinham mesmo a calhar para que na sua cabeça se justificasse um arrendamento anual de uma casa na Malveira. 

Três dias depois de terem chegado, já só faltava limpar o anexo, recolher as folhas caídas e cortar a relva. Mais dois dias e estava tudo pronto. Para agilizar o processo, decidiu substituir os sacos onde colocava as folhas secas de loureiro por um bidão grande onde as colocaria todas. Como acabou por ficar um bocado pesado, lembrou-se que se queimasse aquilo tudo ficava o problema resolvido. 

Quando a polícia chegou por volta das 16h00, o fogo alastrava já pela parte de trás da casa. Meteram-no no carro e levaram-no para a esquadra. Pelas 18h00, os bombeiros já tinham a situação controlada. Convencido de que ainda estava no papel de vítima, Sardinha desabafou com o polícia que, felizmente, o seguro cobria aquelas coisas, que não fosse ele um dos maiores especialistas de seguros do país de certeza que já lhe tinham estragado a vida, que a empresa é muito experiente nestes assuntos...

Foi já nos calabouços da PJ que se lembrou da jarra. Na verdade, desde que havia chegado à Malveira a mulher não tinha tocado no assunto. No fundo, até estavam a ser umas belíssimas férias. 

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o tempo das formigas

por jorge c., em 18.07.16

Todas as virgens do meu bairro deixaram de o ser sem que eu tivesse dado por isso. E tal como as virgens e os virgens, a vida no bairro foi crescendo comigo, tomando passos tantas vezes divergentes, e assim nos fomos separando. Ficou na memória um tempo de cumplicidades, de íntima relação com os muros das casas, com os bancos dos jardins, com a virgindade de todos os elementos que compunham o bairro e que com ele pareciam estar sempre a preparar as férias. Mas no Verão de 95, demoliram a casa do lavrador e todo o terreno foi ocupado por máquinas de construção. Durante esses dias, desapareceram os pessegueiros e as ameixoeiras, e com eles as raparigas de vestidos de algodão e o cheiro frutado dos corpos. Desapareceram também os formigueiros por detrás dos muros do prédio da minha infância que anunciavam o início do campo, quando trepávamos à descoberta do dia. Quando mudámos de casa, já não havia sinais da minha infância. As raparigas já não eram virgens e os rapazes eram tontos profissionais, ansiosos pela adultícia. Nos anos em que vivi sozinho nessa memória, descobri três ou quatro pormenores que ainda hoje, atravessando as mais elementares leis da física, me permitem viajar no tempo.

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o spleen da borda d'água

por jorge c., em 15.07.16

O cenário das ruas tem mudado. O mundo que chegou à pátria orgulhosamente só trouxe consigo outros hábitos. Cruzei-me, há dias, com uma mulher que caminhava enquanto fazia uma vídeo-chamada. Nas mercearias que são, agora, propriedade de mulheres e homens vindos de toda a parte, vemos e ouvimos as cores desses lugares distantes a saírem dos dispositivos, e com eles as reações, umas vezes alegres, outras apreensivas, destes novos vizinhos. É então que reparo em dois homens - portugueses, suponho - de telefone em riste, apontando para uma parede da cidade. A imagem, ainda que estranha, deverá ser, em breve, uma constante. A partir de hoje, muitos serão os diletantes desse jogo que encontra pequenos bonecos nos sítios mais improváveis. Chamam-lhes Pokémon. Poderia lá a história da Borda d'Água ficar indiferente.

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on the beach

por jorge c., em 12.07.16

Com a morte da mulher, Kasper já havia decidido deixar a cidade, afastando-se da preocupação alheia, dos pequenos dramas alheios que conspurcam o ar de banalidade, da alegria forçada e dos fretes. Anos mais tarde, o acidente do filho deixou-o sozinho no mundo e partiu para uma pontinha de Portugal onde dificilmente teria de se justificar. Dos anos que viveu em Vila do Bispo tem saudades da praia vazia, do vento e das ondas a impulsionar a dor para os céus, da estrada vazia, do pão fresco e carinhoso que lhe devolvia a manhã, do silêncio crepuscular do verão e do olhar melancólico dos turistas quando regressavam a casa. 

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