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notas da realidade ficcionada na lezíria
Hoje de manhã recebi a notícia da morte do JB. Teve uma vida dramática e o final não foi menos trágico. Afogou-se num rancor que o levou para longe de todos e perdeu as capacidades essenciais. A notícia chegou-me por sms, que é uma forma ingrata de nos apanhar desprevenidos. Mais tarde, uma notificação do Público no telemóvel anunciava a morte de Júlio Pomar. E é assim que agora ficamos a saber da morte, por notificação.
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Para evitar as declarações sentimentalistas duvidosas na televisão, fui ler alguns excertos de Textos e Variações. Pomar tinha uma escrita muito semelhante à pintura: um traço fino e poético, uma procura do real, um olhar sobre o mundo e sobre a cultura do mundo. Fechei os olhos e relembrei o desenho que ocupa toda a parede interior do Museu do Neo-Realismo, onde se ergue, imponente, um camponês que nos obriga a olhá-lo de baixo para cima. Em mais nenhum ponto do museu conseguimos ver a imagem integral, só cá de baixo. Mas não o devemos apenas à curadoria. Devemo-lo, sobretudo, a essa ideia que tantas vezes debateu com Lima de Freitas, Cunhal ou Redol de que a arte também tem de representar as preocupações reais do homem comum e não, apenas, as aspirações metafísicas do artista.
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Há uma certa espiritualidade nas coincidências. Hoje, enquanto ajudava MS a montar a sua instalação da próxima exposição, deparei-me com uma impressão onde estva inscrito o nome de Pomar e de um dos seus livros. Creio que ao lado também se via, sobreposta, uma das suas pinturas. As coincidências têm a capacidade de nos demonstrar como a relação que temos com as coisas consegue ser tão singular.
A comunidade sente-se mais feliz em festa. O inverno foi longo e, com ele, os mal-entendidos, os desentendimentos, a reclusão, o ressentimento. Ao primeiro sinal de festa, a vila respira de alívio, sorri, diz bom dia, brinda, embriaga-se. À noite, a tradicional pancadaria. Foi um bom regresso.
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Aproxima-se mais uma mudança nas exposições temporárias do Museu. É preciso desmontar, devolver, arrumar, para que logo se desenhe um novo prolongamento da sua vida. Sinto sempre uma imensa melancolia no dia da desmontagem. A efemeridade das exposições obriga-nos a aceitar o irrepetível. Digamos que é como um fim de dia.
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Regressei à banda sonora de "I Am Sam", que devolve o espanto poético à música dos Beatles. A poesia ganha sempre novas vidas quando as palavras recuperam a força ou quando a ganham pela primeira vez. Vem-me à memória, assim de repente, a forma ainda bem mais hesitante com que Ben Harper diz "I think, er, no, I mean, er, yes/ But it's all wrong/ That is I think I disagree". Mas é melhor ter cuidado com estas heterodoxias. Os dias não estão de feição à discórdia.
Há dias deceparam duas árvores - amoreiras, creio - num dos largos mais antigos da vila. Os meus conterrâneos lá mostraram o seu desagrado, reivindicando o seu património, evocando dias felizes. Hoje, passei por lá e o cenário é crucinante. Habituei-me, contudo, às mudanças, porque o tempo e a distância são crueis com a memória da paisagem. Quando nos ausentamos por longas temporadas, tudo se transforma: no homem outrora altivo vemos agora os sinais da decadência do corpo; na casa que habitámos e onde nunca mais entraremos, vivem estranhos; amigos que deixaram de se falar; a calçada do caminho para a escola é substituída por cimento; os cafés fecharam ou mudaram de proprietário; as velhas casas de piso térreo deram lugar a novos prédios; as árvores morreram. Por vezes, basta uma ausência de dias para que tudo mude, sem nos pedir licença. É a vida própria da civilização a imitar a natureza. E, embora o ressentimento seja legítimo, de nada vale guardarmos rancor à inevitável transformação no mundo, pois dela também somos cúmplices.
Estou hesitante em considerar uma abordagem passivo-agressiva de um ativista anti-tauromaquia como ofensa ou ingenuidade. Dizem-me os amigos que é uma coisa da idade, mas não consigo desligar o botão da ofensa. E não falo da ofensa simples, mas de uma ofensa generalizada à liberdade dos indivíduos. Estive quase a pregar-lhe dois bananos nos cornos. Vontade, essa, não me faltou. Mas contive-me, com o estoicismo que preside a esta minha nova consciência pacifista, à qual não posso deixar de capitular. Houve tempos, claro, em que não hesitaria em pregar no estafermo arrogante dois valentes socos, aos quais não teria reação. Seria simples: uma chapada de mão aberta na fonte, seguida de um gancho, com o propósito de lhe partir a cana do nariz ou, caso falhasse, rebentar-lhe o queixo. Não o fiz. Virei costas e segui, em marcha solene pelo Dia do Trabalhador. Mas por que raio há-de esta gente aproveitar dias de celebração para reivindicar o seu ódio aos outros? Com tantos inimigos que temos, escolhem sempre os mais desprotegidos para condenar. Enfim, é o drama habitual da cultura dos outros. De resto, foi um bom dia.