Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]


campino negro - II parte

por jorge c., em 01.11.14

Não é fácil um homem tomar decisões contra as suas mais profundas convicções. Se não acreditava em fenómenos do além, como poderia tomar uma decisão com base num esoterismo? O dilema tomou conta do seu espírito, porquanto a incerteza e a dúvida começavam a dominá-lo. Pela primeira vez, duvidava, punha em causa séculos de ciência, de racionalismo, de lógica, de dialéctica. Tinha de haver uma explicação. Provavelmente, um dos seus primos, invejosos maltrapilhos, queria deitar a luva ao que era seu por direito e montou ali um teatrinho, de forma a expulsá-lo dos terrenos. "Era o expulsas!" Dali, ninguém o tirava. 

A ordem era para disparar a matar. O Sargento tinha assegurado que a guarda testemunharia a legítima defesa se algo se apresentasse como um facto imprevisto. Quanto aos fantasmas, se existissem, não teriam personalidade jurídica. O importante era resolver o assunto à moda antiga, que estas coisas não se podem tratar com paninhos quentes e esperar que venha uma rapaziada de Lisboa cheia de estudos e formalismos que só atrapalha e não chega a conclusão alguma. Para além disso, o negócio era surpresa e não é justo estragar uma surpresa. O Dr. António e o sócio queriam passar despercebidos, sobretudo perante o fisco. Gente modesta e discreta.

Foi então que mandou Berto ir lá com o sargento, a meio da noite, de forma a certificarem-se de que não aconteceriam mais episódios daqueles. As obras atrasavam-se cada vez mais e, como se sabe, o dinheiro não pára, como as passadeiras dos aeroportos: ou se é eficaz na recolha da bagagem, ou já era. Há que ser implacável e fazer acontecer. Podíamos ficar aqui o dia todo a trocar galhardetes de auto-ajuda mas a história tem de avançar e o campino prepara-se para atacar.

Ainda não era meia-noite quando se instalaram debaixo do sobreiro, com as armas em riste, à espera de movimentos suspeitos que pudessem vir de além, que é como quem diz do além. Se Deus os ouvisse, diria que tinham perdido o juízo, contudo, como é sabido, Deus não dorme mas descansa a vista e, àquela hora, não estaria para se chatear com detalhes sem importância. A religião tem minudências caprichosas que nos dão imensa margem de manobra. Um tipo com boa breakage consegue mexer-se muito bem nas vielas da vida, para depois seguir pela auto-estrada da eternidade sem contratempos. Como não se passava nada, Berto sacrificou-se e decidiu pensar. Depois de uma reflexão exigente, concluiu que o mais indicado seria simularem uma situação de obra de modo a que os fantasmas, ou lá o que era aquilo, se manifestassem. Que inteligência! O leitor repare como este homem teve a humildade e o discernimento de admitir que aquilo que ele e o seu sócio estavam ali a fazer nem aos espíritos agradava. A isto se chama pragmatismo.

Ao contrário de António, Berto era temente e não lhe era fácil desafiar assim o desconhecido. Encheu-se de coragem e ordenou que ligassem as máquinas. Alguns minutos depois, reparou numa sombra que começava nas ervas e se esticava até ao cercado, terminando na figura de um homem sentado, de costas. O homem olhou por cima do ombro e Berto viu-lhe na silhueta o olhar demoníaco, vermelho de sangue do fogo dos infernos. A espingarda tremia-lhe nas mãos, apontou cauteloso e disparou. Mal ouviu o disparo, o Sargento Ribeiro precipitou-se para trás do jipe dando ordem para que os subalternos avançassem. Quando o tiroteio cessou, o homem ergueu a vara e, de repente, uma manada de gado bravo, de olhos igualmente infernais, investiu contra os corajosos militares que, mal a viram arrancar, desataram a correr campo fora até se aperceberem que não tinham onde se esconder. Ainda assim, Ribeiro esqueceu os 97 quilos e seguiu correndo até vislumbrar o solar, onde acabaria por chegar sem o boné da farda, todo desfraldado e apenas com meio pulmão a funcionar - o orgulho da sua mãezinha.

Na outra ponta da herdade, Berto era encostado ao tronco da árvore pela bota daquela criatura lúgubre, sem rosto, apenas com aquele olhar mortífero e que só numa distante aparência se assemelhava a um homem. Um campino, talvez, sim. 

- Que queres de nós? - gritou Berto, aterrorizado.

A criatura estendeu a vara, apontando imperativamente na direcção do solar. Retirou o pé do ombro do pobre empresário que acabou por seguir cambaleante e aos tropeções, durante mais de uma hora. Foi como um farrapo que chegou às portas do solar e, sem parar, remetendo-se ao mais profundo dos silêncios, entrou no seu carro e partiu. Atrás dele, um pouco mais recompostos, os guardas e o seu chefe seguiram-lhe o exemplo e deixavam António Feitor de Mello sozinho. Era só um começo.

Ainda nessa noite, encontrar-se-ia deitado, sem conseguir adormecer. Não obstante a idade do soalho, habituara-se ao ranger da madeira desde muito novo. Nunca tinha sentido medo. De nada. Porém, não podia negar que os acontecimentos das últimas horas atingiram um grau de paranormalidade assustador e que a sua vida poderia estar, agora, em risco. Quando, finalmente, estava prestes a dormir, sentiu uma presença no quarto. Convencido de que estava a ser sugestionado pelo medo, não abriu os olhos de imediato, tentando concentrar-se no sono. O som demasiado próximo dos cascos de um cavalo acabaria por despertá-lo. À sua frente, o Campino Negro. 

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)



Pesquisar

  Pesquisar no Blog

Correio

bordadauga@gmail.com


Arquivo

  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2020
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2019
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2018
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2017
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2016
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2015
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2014
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D