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notas da realidade ficcionada na lezíria
Tenho tentado recuperar a minha relação com deus. Após um período de agnosticismo radical e outras tarefas domésticas, pareceu-me prudente começar a pensar nas hipóteses que o desconhecido nos coloca. É um pouco como tentar reatar relações com amigos que fomos perdendo ao longo da vida. O que custa é a iniciativa. Não me recordando, ao certo, de como rezar, decidi escrever-lhe. Ao início, pareceu-me uma ideia patética, tendo em conta a sua omnisciência, omnipresença, omnipotência e tutti quanti. Foi aqui que começaram os embaraços. Apesar das dificuldades em encontrar morada certa, o importante, para já, era escrever. Como nos dirigimos a deus, após tamanha ausência? A relação perde-se, a cumplicidade desaparece e aquilo que era uma conversa tu cá tu lá, torna-se num confrangimento um pouco infantil. Poderia optar pelo modelo formalista ensinado nas melhores escolas de comunicação e secretariado "Exmo Sr.". Pareceu-me excessivo. Tentei, então, algo menos impessoal: "Boa tarde,". Não, demasiado temporal. Vamos, então, para uma abordagem descontraída: "Caro Deus". Algo de materialista fez-me recuar. Talvez se fosse mais pragmático, a coisa funcionasse: "Deus". Sim, não restam dúvidas. "Deus, no seguimento da nossa última conversa, venho por este meio informar que estou disponível para chegar a acordo sobre a forma mais adequada de nos entendermos. Creio (e com isto já estou a fazer cedências) que é chegada a altura de redefinir o plano previamente estabelecido para a minha vida, cujos recentes resultados não foram ao encontro das expectativas por mim legitimamente adquiridas, aquando da minha última conversa com o Sr. Padre Almerindo. Sem mais assunto, fico a aguardar feedback, despedindo-me com cordialidade. Atenciosamente, Eu." Dobrei o papel, enfiei-o no email e enviei para um dos contactos disponibilizados pelo sítio oficial do Vaticano. À noite, deitado, fiquei a olhar para o tecto do quarto, com a angústia que se sente ao pensar na correspondência perdida.