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notas da realidade ficcionada na lezíria
Acordo de manhã e vejo-te no espelho. Não vais para novo. Reparo numa ligeira dificuldade em erguer o corpo, o que será o resultado de uma breve vida de excessos. Não és assim tão velho. Tens peso a mais, perdeste o cabelo mas os olhos ainda brilham com orgulho. Talvez ainda te lembres de nós, quando esqueces as rugas das expressões e o passar do tempo pela pele. Sei que te interrogas todos os dias sobre a figura reflectida, mas garanto-te que aquele és tu e não há nada a fazer. Conforma-te com as consequências da adultícia. Estás sozinho e a melancolia da quarta década é, agora, a dos amigos e dos momentos em que poderias ter mudado o rumo. Pensas na tua consciência como uma virtude e sorris com humildade, como quem fez o possível. Gostas da minha memória e admiras as ruas como elas eram. Por isso, és um conservador. Cultivaste um espírito lúcido e lógico e, não raras vezes, ris-te das irritações e fúrias com assuntos menores. Por vezes, julgas-te um rapazinho e isso ajuda-te a conservar o brilho nos olhos, o sentimento visceral de justiça, de liberdade, de igualdade e de esperança. Acreditas euforicamente no amor e amas incondicionalmente os teus pares, cujos defeitos e virtudes identificas com o desprendimento de quem não tem paciência para fazer julgamentos. Sabes, porém, que a proximidade física é efémera. E apesar de revelares a tua intimidade, és intolerante com a invasão do teu espaço que é uma montanha isolada e que cresce no infinito. Hoje estás especialmente triste. Vês os amigos a desaparecer, o mundo à tua volta a andar aos círculos e ninguém parece saber o que fazer. É por isso que desististe de desfazer a barba, como se diz no Porto, e viver o possível na Borda d'Água.