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o campino negro - I parte

por jorge c., em 31.10.14

Na Herdade de Montes Claros não se ferra gado vai para mais de 50 anos. Depois do acidente do menino Eduardinho, a Senhora D. Amélia não mais quis ver o nome da família ligado às coisas dos toiros. Pouco antes de morrer, a matriarca dos Feitor de Mello deixou clara a sua única exigência a José Inocêncio, o Maioral-mor da casa, que havia de governar o campo nos anos seguintes, até entregar a sua alma ao desconhecido. O corpo de Inocêncio seria sepultado junto do jazigo dos patrões, tal era a estima que aquela gente lhe tinha, num mausoléu construído perto da albufeira, no nordeste da propriedade, a 8 quilómetros do Solar dos Feitores. Era como um membro da família, mas sem direitos sucessórios.

No final dos anos setenta, depois de algumas tentativas de ocupação dos terrenos outrora concedidos por D. Miguel ao bisavô de Dona Amélia, pelos serviços prestados e pela fidelidade à causa, o mausoléu acabaria por se degradar e cair no esquecimento dos descendentes, entre os quais se tem destacado, pelo insucesso dos negócios na região, António Feitor de Mello. Conhecido pela sua habilidade para se desfazer do património da família, o filho varão de Miguel Feitor de Mello - irmão do menino Eduardinho - recuperara o ferro da ganadaria e preparava-se para um investimento muito rentável proposto por um homem que procurava, agora, o prestígio e o reconhecimento social que o dinheiro não lhe havia conferido e ao qual, com a ajuda do Conde de Lata, como lhe chamavam na cidade, poderia almejar.

O projecto ambicioso implicava, contudo, a edificação de uma estância turística no nordeste da propriedade. Para o traslado, deparar-se-ia com alguma burocracia o que, com meia dúzia de contactos bem feitinhos e gente posta no seu lugar, não seria um problema. Faltavam, agora, os animais para ferrar - uma jogada duvidosa. Se tudo corresse bem, em 5 anos estaria de volta ao lugar onde acreditava merecer estar, por condição. Como os terrenos eram vastos e por ali não se via viv'alma durante semanas, às vezes meses, decidiram começar os trabalhos para ir dando um avanço às suas ambições. Berto Silva, o investidor que sonhava com jantares nos salões mais nobres do Ribatejo e com a vida boa de Lisboa, mandou os seus homens avançar mal o verão se pôs no horizonte, após a última colheita, no dia 28 de Setembro. Nessa mesma noite, um dos homens seria encontrado catatónico, junto a um sobreiro.

 Estava para ali, todo estouvado no meio das ervas, de olhos arregalados, paralisado. Depois de duas horas de abanões, baldes de água e alguns tabefes, lá reagiu com o coração na boca, em pânico, como quem apanha um susto aterrador, o que, de facto, acontecera. Mal conseguia articular as palavras e o corpo encolhia-se em medo sempre que um dos outros insistia em que contasse o que se passara. Por volta das quatro da madrugada, embrulhado numa manta, tremendo de frio, lá contou, timidamente, o que lhe havia acontecido. Segundo o seu relato, a lua já ia alta quando ouviu um barulho estranho vindo de umas sebes ali perto. Como o patrão não os queria desprevenidos naquela fase do projecto, aproximou-se com o dedo pronto a carregar no gatilho, ainda que as pernas lhe parecessem um pequeno ramo verde a sustentar um grande tronco de madeira, e espreitou por detrás do cercado quando, de repente, foi projectado uns 3 metros para trás pela força de um vulto que - acabou por confessar - lhe parecera uma manada. Julgou que teria tido a sorte de uma vida por não ter sido colhido. Mas, assim que recuperou a verticalidade, olhou para um sobreiro que ficava um pouco mais distante, naquela direcção, e viu uma imagem de um homem, a cavalo, de vara ao alto, enxotando a manada. A imagem do homem, podia jurar, era como uma sombra, negra como uma nuvem de um inverno muito escuro. Os outros ficaram em silêncio, tal foi o silêncio infernal dos olhos do seu companheiro. 

Pela manhã, já todos no solar tinham conhecimento do sucedido. Ignorando a reverência da criadagem solarenga, imbuído pelo espírito pragmático e descrente dos tempos, o patrão mandou chamar a guarda, na certeza de que se trataria de uma invasão de propriedade, prevista e punida por lei. Era um homem muito ciente dos seus direitos. A polícia lá andou junto do cercado, dentro do perímetro indicado e mais além, não tendo, porém, encontrado quaisquer vestígios de invasão, muito menos da passagem de gado por aqueles lados. Seria fácil reconhecer as marcas de uma manada num terreno onde o gado era coisa do século passado.  

- Vamos voltar ao trabalho. Bebam menos e trabalhem mais - ouviram o doutor dizer a Berto num tom ameaçador.

Nos dias seguintes apressavam-se na obra enquanto o sol não descia e evitavam a noite como podiam. Sempre que se preparavam para sair do campo, tinham o cuidado de olhar em volta e arrancavam nas carrinhas a toda a velocidade. Os patrões achavam que os trabalhos iam demasiado lentos e começaram a sensibilizá-los para a importância de prolongar o horário pela noite dentro. Ou isso, ou seguia uma denunciazinha para os serviços de emigração, alertando para a presença de uma dúzia de indivíduos ilegais que estariam, indevidamente, a ocupar propriedade privada. O Sargento Ribeiro concordou que seria limpinho. Assim, os serões junto do mausoléu regressaram a toda a força. E daí, talvez não.

Dois dias após o recomeço dos trabalhos nocturnos, um grupo de três homens apareceu esbaforido no barracão. Diziam que não voltavam ali, que aquilo estava assombrado e que tinham visto o fantasma do campino, tal como a primeira vítima contou. Ademais, há toiros à solta, tendo um deles sido parcialmente colhido contra um tabique que acabaria por lhe salvar a vida. Quando levantou a camisa e mostrou as marcas dos pitons do toiro, António Feitor de Mello alarmou-se. Não podia ser; não havia gado bravo ali desde os anos 60; não havia marcas no chão. Mas, que raio se estava ali a passar?

 

 

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