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notas da realidade ficcionada na lezíria
Prometeram que não iria chover. Olho para o céu e reparo que, depois do nevoeiro, surgem algumas nuvens com intenções duvidosas. Volto a entrar com as pernas geladas e regresso à secretária. O algoritmo das redes sociais sugere-me dois livros de Karl Ove Knausgaard, cuja imagem me é familiar. Lembra-me, de certo modo, aquela curiosidade com o tipo que, a certa altura, nos cruzamos com frequência nas mais distintas circunstâncias, mas que nunca chegamos a conhecer. A curiosidade transforma-se num assédio involuntário, por vezes em ressentimento. O que faz um estranho no domínio latente da minha esfera cognitiva? A pergunta é tão idiota quanto a sensação de invasão. Vou, então, pesquisar sobre Knausgaard. A Wikipédia dá-me alguns dados biográficos, prémios literários que lhe foram atribuídos e uma descrição das polémicas provocadas pela obra do norueguês. Sugere-me, também, uma entrevista feita por James Wood para a New Yorker em 2014. Aceito a sugestão. Ao longo da entrevista, o crítico demonstra alguma admiração pela coragem do escritor. Coragem. Chama coragem à exposição. Os livros de Karl Ove Knausgaard são autobiográficos, numa batalha que tenta derrubar o tédio da ficção. Conheço a reflexão. Ainda assim, fico sem saber muito mais, restando-me a inevitável leitura que adiarei até encerrar outra dezena de preconceitos idênticos. Acho que vou reler Os Filhos da Droga ou a Bíblia.
Se houver uma geração x em Portugal, ela é filha de uma inquietação sonâmbula que andou pelas ruas durante duas décadas, sem saber muito bem o que escolher. Se houver uma banda sonora para essa geração, ela tem letras de Rui Reininho.
Ficámos órfãos de poetas. Restam-nos os livros e os versos latentes que são como uma adição da influência que se perpetua no caminho da nuca para a língua. Perdemos a certeza do corpo presente que guarda a dignidade do mundo - as barbas, os gatos, os olhos das coisas intangíveis, isolados do excesso de tangibilidade de todas as outras coisas. Ficamos agora à superfície, a boiar sobre os abismos, ignorando as suas profundezas e o fogo que nasce dentro da Terra. Enterramo-nos vivos.
Nada há a dizer sobre Salinger. Não há qualquer explicação ou teoria. É o que é - literatura. Creio que seria, aliás, um erro brutal tentar ensaiar uma explicação qualquer para Catcher in the Rye e Franny and Zooey. A experiência de leitura de qualquer uma destas obras é a única relação existente entre nós e uma espécie de adrenalina transcendente. Essa experiência resulta numa impressão íntima de satisfação e inquietação que nenhuma teoria literária conseguirá convocar. Sobra depois a angústia do fim, de não haver mais nada, e a vontade de voltar à mesma experiência como se nos quiséssemos repetir, eternamente, a nós mesmos.
"A Borda d’Água é, segundo o Dr. José Leite de Vasconcelos (Etnografia Portuguesa Vol. III), expressão meramente popular, cujo protótipo se vislumbra, já em 1527 (…). Borda d’Água é expressão muito mais restrita que Ribatejo, mas sem delimitação rigorosa, como acontece com a maior parte das denominações populares. (...) À afamada feira de Vila Franca de Xira chamavam os velhos: feira da Borda d’Água."
Francisco Câncio; Ribatejo Lendário e Pitoresco.