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por jorge c., em 03.05.18

Há dias deceparam duas árvores - amoreiras, creio - num dos largos mais antigos da vila. Os meus conterrâneos lá mostraram o seu desagrado, reivindicando o seu património, evocando dias felizes. Hoje, passei por lá e o cenário é crucinante. Habituei-me, contudo, às mudanças, porque o tempo e a distância são crueis com a memória da paisagem. Quando nos ausentamos por longas temporadas, tudo se transforma: no homem outrora altivo vemos agora os sinais da decadência do corpo; na casa que habitámos e onde nunca mais entraremos, vivem estranhos; amigos que deixaram de se falar; a calçada do caminho para a escola é substituída por cimento; os cafés fecharam ou mudaram de proprietário; as velhas casas de piso térreo deram lugar a novos prédios; as árvores morreram. Por vezes, basta uma ausência de dias para que tudo mude, sem nos pedir licença. É a vida própria da civilização a imitar a natureza. E, embora o ressentimento seja legítimo, de nada vale guardarmos rancor à inevitável transformação no mundo, pois dela também somos cúmplices.

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quem te quebrou o encanto nunca te amou

por jorge c., em 18.04.18

São as fotografias antigas dos amigos que não conheci em novos que me inspiram, agora, a nostalgia. Sinto saudades pela sua juventude, pela alegria nos seus olhos, no riso, na intimidade dos gestos com outros que desconheço. Nas fotografias dessa juventude é sempre primavera ou verão. Ouve-se a música a respirar e há uma imensa luz. É então que me lembro da minha pele ao sol no recreio da escola e do cheiro das hormonas. A música nunca era triste. 

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o tempo de dummy

por jorge c., em 12.10.16

À janela do edifício, um homem observa a chuva num pequeno espasmo de melancolia. Pergunto-me sobre o que pensará. Eu sei no que penso quando o faço, quando chegam as primeiras chuvas do outono: regresso ao lugar onde fui feliz. Numa imediata associação de ideias, recordo-me das tardes no café, dos pés encharcados e gelados, dos casacões, do cheiro dos paniques e do carioca de limão, das conversas sobre as coisas importantes da vida. De um lado, um estuda Análise de Matemática II, do outro a Teoria Geral do Direito. No som de fundo ouve-se Sour Times ou Roads. Regresso ao tempo de Dummy, de onde nunca deveríamos ter saído. 

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o ribeiro

por jorge c., em 13.09.16

Durante aquela idade em que não somos nem carne nem peixe e em que a tendência para a inconsciência é maior do que o habitual, descobrimos um ribeiro dentro do bairro. Havia, aliás, alguns ribeiros que desapareciam com a nova construção que ali começou a crescer, para nossa infinita tristeza. Alguns deles serviam os campos, mas este servia sobretudo um tanque de lavadeiras. Descia a encosta, passava por debaixo de uma pequena ponte de betão inacabada e terminava no tanque onde, por regra, passávamos as tardes de domingo, a ver as cores que nele se formavam. Era raro ser sempre a mesma. O cheiro do sabão confundia-se com outros odores mais duvidosos. Por vezes, ficava-se com a sensação de estar perante um esgoto aberto.

As casas em volta, nesse lado do bairro, formavam pequenas ilhas de construções clandestinas, onde viviam famílias de seis ou oito pessoas e onde existiu durante muitos anos uma panificação sobre a qual recaía o mito das caganitas de rato no produto final. O ribeiro atravessava a encosta que dividia as casas, como se fosse a Veneza dos pobres. Dentro das que conheci, o mobiliário não tinha um estilo uniforme e, para disfarçar a falta de luz, era feito de madeiras claras e frágeis e as prateleiras estavam sempre despidas. Os quartos eram divididos entre os membros da família, estando o espaço mais reservado destinado ao chefe de família e à mulher. Os miúdos partilhavam o quarto com os avós e, por vezes, nalguns casos, a sala acabava por servir duas funções. As cozinhas eram pequenas e as casas de banho interiores recentes e igualmente exíguas. A fossa que servia as casas também era partilhada e mais tarde até surgiu, sem se saber bem como, uma antena parabólica onde durante as férias tentávamos ver pornografia na RTL.

Certo dia, apercebemo-nos de que a água do ribeiro não morria ali e continuava por um cano. Intrigados, decidimos tentar seguir o curso da água e acabámos por descobrir um furo no campo do Sr. António - o nosso maior rival. Para escapar aos chumbos da espingarda com que habitualmente nos recebia, trepámos por um muro mais discreto para ir à chinchada e acabámos por cair num charco de lama e estrume que não parecia secar. Do outro lado do muro, uma linha de água suja parecia ser o que restava do ribeiro que saía do tanque. Nunca mais roubámos ameixas.

O Ribeiro da Maínça foi durante a minha infância e pré-adolescência a minha imagem íntima da miséria escondida. Quando deixei o bairro, nunca mais lá voltei. Mas às vezes, nos primeiros dias da Primavera, ainda lhe sinto o cheiro e a resignação. Depois das últimas urbanizações que tentaram fazer do meu bairro da infância uma zona mais urbana e sofisticada, a encosta por onde passava o ribeiro desapareceu da vista dos demais. Por vezes, quando me lembro dos rapazes, penso no quanto a vida nos sorria enquanto estávamos juntos, à procura da felicidade.

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uma crueldade por dentro

por jorge c., em 05.08.16

Passei os melhores anos da minha vida na cama. O corpo e o cérebro não se entendiam. No tempo em que aproveitamos para correr todos os caminhos e construir pontes eu estava na cama, a olhar para cima ou de olhos fechados. Lembro-me das sombras e do calor no quarto, dos filmes banais, da falta de comida, de um cheiro constante a tédio, da resignação. Não me posso arrepender, porém, de nada disso. Não nos podemos arrepender daquilo que não temos culpa. É uma doença cruel. 

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o tempo das formigas

por jorge c., em 18.07.16

Todas as virgens do meu bairro deixaram de o ser sem que eu tivesse dado por isso. E tal como as virgens e os virgens, a vida no bairro foi crescendo comigo, tomando passos tantas vezes divergentes, e assim nos fomos separando. Ficou na memória um tempo de cumplicidades, de íntima relação com os muros das casas, com os bancos dos jardins, com a virgindade de todos os elementos que compunham o bairro e que com ele pareciam estar sempre a preparar as férias. Mas no Verão de 95, demoliram a casa do lavrador e todo o terreno foi ocupado por máquinas de construção. Durante esses dias, desapareceram os pessegueiros e as ameixoeiras, e com eles as raparigas de vestidos de algodão e o cheiro frutado dos corpos. Desapareceram também os formigueiros por detrás dos muros do prédio da minha infância que anunciavam o início do campo, quando trepávamos à descoberta do dia. Quando mudámos de casa, já não havia sinais da minha infância. As raparigas já não eram virgens e os rapazes eram tontos profissionais, ansiosos pela adultícia. Nos anos em que vivi sozinho nessa memória, descobri três ou quatro pormenores que ainda hoje, atravessando as mais elementares leis da física, me permitem viajar no tempo.

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Já se cuspiu mais sangue do que vómito na noite de S. João. Histórias antigas resolvem-se na noite maior dos excessos. Foi sempre assim. Lembro-me ainda dos desacatos simples: os carros cercados, os empurrões e os gritos a forçar o beijo entre os tripulantes; o assédio à miúda errada; a cerveja entornada por cima do tipo errado; um sócio que não dispensa um cigarro nem vinte paus. Uma vez, em S. Bento, o campo de batalha era toda a praça, formando-se não uma multidão, mas círculos de hooligans como nos concertos de metal que naquela altura se faziam no parque de exposições, do outro lado do rio. Um dia, dei por mim a acordar na praia no meio da ressaca da vida. À volta, a manhã ainda fumegava resíduos de violência, entre descargas de esgoto e de estômago. Ninguém parecia estar em condições de prosseguir a vida como se nada fosse, excepto o casalinho que encontrara o amor durante a noite e que continuava a conversar na descoberta do novo dia, do futuro a dois, quem sabe - outras manhãs sem que ninguém por perto seja visto a cuspir sangue ou bílis. As marcas profundas das coisas esquecidas arrastavam-se pelos passeios e as pastelarias enchiam-se de zombies esfaimados que, no regresso a casa, ostentavam orgulhosos a resistência à noite derradeira. 

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branda violência

por jorge c., em 20.04.16

Meia-estação. Sempre a meia-estação. Lembro-me dos domingos de meia-estação, o cheiro das velas na igreja, o incenso que julgava afastar o cheiro do suor quente-e-frio dos corpos que derretiam como cera, debaixo do sol da eucaristia, e depois gelavam com a sombra das nuvens saudosistas. Pela tarde, as ruas ficavam vazias e sobravam os restos do mundo embrulhados em sobretudos de fazenda, como zombies imunes à temperatura, e duas ou três tendas a vender cavacas e bugigangas na esperança de que todos os domingos fossem como em Jesus Cristo Superstar. Achei sempre que essa relação entre a missa dominical, os indolentes e a venda ambulante era um encontro cósmico de toda a decadência, abençoado pela temperatura falsamente amena da meia-estação e pela música de Nelson Ned. Mais tarde, quando a indolência me venceu, dei por mim a subir os montes num domingo à tarde, o sol a derreter a pele como se fosse a cera das mezinhas, os insectos, a terra seca e o pó a invadir as narinas já ressequidas do tabaco e do brandy. Foi outro desespero de tardes iguais, outro calor, a mesma estação, nem carne nem peixe, o compasso marcado pelos passos enterrados e o romper das silvas. Do chão parecia que se levantavam os mortos para completar o cenário de inferno brando. Não me recordo de outras visões. Ao fim do dia, quando regressava ao bairro, com o frio, o pânico da meia-estação encerrava-se no rosto pálido de Sónia, como numa balada de Violent Femmes. 

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in memoriam

por jorge c., em 25.01.16

Tem sido um Janeiro de despedidas. Encontramo-nos muitas vezes na elegia colectiva quando a figura é grande, universal, inspiradora. No meio das sucessivas despedidas, há um homem que terá passado despercebido ao mundo, mas cuja magnitude inspirou gerações de raparigas e rapazes, nessas idades em que a nossa intimidade luta entre o que somos e o que os outros querem de nós. É nesse tempo que surgem indivíduos que mudam a nossa vida; que - lá está - nos inspiram. 

Não fui um desses rapazes. Não o conheci. Mas foi numa tarde como a de hoje que me emocionei com o reconhecimento de um homem que, até então, desconhecia.

João Chaves - o Joãozinho da voz doce, como lhe chamavam - foi professor na D. Pedro V, tendo atravessado algumas gerações de alunos, entre o antigo regime e o pós 25 de Abril. Durante esses anos, ergueu um grupo coral por onde passaram centenas, senão milhares, de alunos de origens tão distintas que o resultado não poderia ser outro senão uma das mais belas expressões da identidade colectiva, da solidariedade e da comunhão. Só um homem com um raro espírito de humanidade poderia, então, tantos anos depois, numa tarde de chuva, reunir à sua volta um reconhecimento tão profundo. 

Soube, por estes dias, da morte do grande maestro dos alunos da D. Pedro V, escola com a qual eu não tinha qualquer relação até àquele dia. Quando a notícia me chegou, lembrei-me, com a inevitabilidade com que a música me visita, dessa tarde e da emoção que senti ao ouvir as palavras de Gomes Ferreira na música de Lopes Graça, cantadas por aquelas mulheres e homens que traziam, então, o brilho da adolescência nos olhos. Esse brilho que acende de almas e de sóis os mares sem cais e imortaliza os nossos heróis que dormem nos covais.

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rapazes

por jorge c., em 28.12.15

Nestes dias mais intensos do Inverno, a memória tem-se passeado por pequenos episódios e lugares onde julguei que o esquecimento se instalara. Mas o confronto quotidiano com as coisas do mundo faz-nos sempre regressar a casa. Ou às coisas que são como casa: o recinto da escola, o cheiro dos plátanos, os toldos dos cafés, os muros medievais das boiças, as urbanizações que cresciam ao mesmo tempo que nós e a luz ou o corpo a aquecer no fim da manhã. Às vezes, ainda sinto a adrenalina da espera do toque, dos corredores vazios sob a chuva de Janeiro, dos cheiros dos casacos encharcados misturado com o das hormonas quentes, e com eles essa pressão para sermos rapazes. Dá-lhe um apalpão que elas gostam. Se não deres tu, há outro que dá. Não sejas mariquinhas. E lá a medo, para não sermos diferentes, traíamos a espinha e condenávamos a memória a essa vergonha abissal que durante o resto dos dias tentaríamos esconder.

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11

por jorge c., em 11.09.15

Uma visão turva da memória imprecisa, indefinida. Talvez estivesse nevoeiro. O televisor a preto e branco desligado. Depois, um telefonema: o mundo está a cair. Em Santiago, as últimas palavras de Allende na rádio a preto e branco: "El pueblo debe defenderse, pero no sacrificarse. El pueblo no debe dejarse arrasar ni acribillar, pero tampoco puede humillarse." Aviões por toda a parte, um ruído ensurdecedor. Acende-se o televisor a preto e branco e os aviões embatem nas torres. Updike escreveria mais tarde "the false intimacy of television", no seu apartamento em Brooklyn, a ver o fumo sobre a cidade. Um homem voa. Talvez Allende "El pueblo debe defenderse, pero no sacrificarse". Outros corpos caem como lágrimas do céu. ¡Viva Chile! "de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor." A humanidade toda, de Santiago a Nova Iorque, nós atrás de um televisor a preto e branco, os corpos dos outros, outro sangue derramado, a humanidade toda, impotente, sem esperança. "de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre." Os dias e os anos passaram. Reabriram-se avenidas. Vieram as cores, as fotografias de Brooklyn Heights e de Santiago. A falsa intimidade da internet. 

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Num outono que me parece já algo distante, entrei num pequeno cinema de bairro para ver a Sonata de Outono. Estava particularmente lúcido apesar da chuva, da gabardine encharcada, das despesas do amor e da segurança social. Bergman em Bergman. Outono no outono. Todos os paralelismos do mundo numa pequena sala cheia de clientes de ciclos, aos círculos, de clientes de sonatas diárias, de prelúdios infinitamente tristes, de tristezas infinitamente diárias em prelúdio, aos círculos, como aquela expressão infinitamente circular de Charlotte enquanto ouve Eva a tocar um prelúdio de Chopin, essa expressão que era imensa e invasiva e que acabava por nos agoniar o peito. Quando saí não era mais lúcido. Desci a rua e entrei no carro seco apesar da chuva, da gabardine encharcada e do rosto perdido de Ingrid Bergman.

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pequenas felicidades

por jorge c., em 24.08.15

Todas as manhãs de Agosto, Nadir acorda angustiado. Talvez porque pense demasiado na felicidade, vai recordando outras manhãs menos tensas, menos angustiantes, todas elas diferentes, tons de felicidade diferentes, pequenas felicidades que juntas lembram uma única e sublime manhã. Chovia nessa manhã em que sentiu as gotas gordas da chuva na cara, por entre os pinheiros de um bosque quase irlandês. Como se agosto não fosse Agosto e fosse antes Augusto de tão divino e luculento. E o cheiro das madressilvas misturava-se com o do papel molhado e do whisky da noite excessiva. E enquanto os outros ressonavam nos quartos do casarão vetusto, eu era feliz a ouvir Elis a cantar a madrugada, entre um e outro cigarro, sem angústias, apenas alguma melancolia. Nadir pensou na feliz melancolia. Tenho pensado na feliz melancolia. Pensado na felicidade. Coisa ridícula.

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a dança dos pássaros

por jorge c., em 10.08.15

Da minha janela de infância ainda vejo, por vezes, o rio lá ao fundo, a ponte, a luz sobre os prédios brancos, as manhãs frescas e claras ao som da Dança dos Pássaros; na televisão, os separadores da Continuidade a transmitir imagens de Lisboa ou os desenhos animados e eu a sonhar como um Tom Sawyer no séc. XX., a sair pelas ruas a correr, as roupas coloridas, o cheiro do verão, a dança dos pássaros. Comprei uns óculos de sol azuis e verdes que me fazem lembrar esses dias. Nem sei bem porquê. Mas a estética da nossa memória é algo tão íntimo que só nós conseguimos ver. Lembras-te? Claro que não te lembras. Inventei esta memória para mim, da televisão, da luz da manhã, da dança dos pássaros, da música do Vargas, dos azuis e verdes misturados na minha indumentária infantil. É um conforto. 

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o último verão

por jorge c., em 22.07.15

Lembro-me do parque nas tardes de verão, de uma t-shirt de padrões listados muito sóbrios, entre o verde e o castanho, e das calças largas que mantinham a pele fresca e nova. Lembro-me das paixões platónicas, dos namoricos mais e menos sérios, das risadas largas e da melancolia da adolescência como uma rockalhada de querubins. Lembro-me dos patos, das guitarras e do walkman com uma cassete dos Smashing Pumpikns que fazia de julho um mês sem ralações e de todos os dias o melhor dia que tínhamos vivido até então. Há poesia suficiente na juventude para envelhecermos melhor. E vice-versa.

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entre a terra e o céu

por jorge c., em 30.12.14

O que fica na memória não se manifesta no imediatismo do tempo. A matéria que a alimenta é lânguida e a sua luz uma estrela rara. Para ser memória tem de ser tempo. Dentro desse tempo, entre a terra e o céu, estão a realidade e os sonhos. E porque os sonhos são a memória da imaginação, que é cúmplice do real, os registos são meras formalidades. O ano civil representa pouco na nossa relação com o universo, não obstante os breves episódios transcendentes como a morte, o amor, a ebriedade, a manifestação artística ou a descoberta. A cultura da novidade per si está a transformar o mundo num lugar vulgar, mais pobre e menos consciente. Quando um indivíduo resolve anotar as suas preferências numa folha de papel em padrões de 10, no fim de cada ano, está a limitar-se e a impedir-se de perceber o que, de facto, há de novo nele e como o mundo se transformou perante os seus olhos. O ano que agora termina foi igual a todos os outros mas as revelações - essas sim - foram diferentes. Na borda d'água vi o reflexo das cores, ouvi as sonatas para viola e piano do Shostakivich e, de certo modo, fui celebrando a vida entre a angústia, o tédio, a alegria e o entusiasmo das ideias, do amor e de todos os sentidos. Viajei entre a terra e o céu algumas vezes e foi na memória que encontrei a justificação para tais viagens. No fim de contas, sou um balanço de mim mesmo.

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cena de café para memória futura

por jorge c., em 20.11.14

Saímos a correr do metro em direcção a uma pequena coffee-shop numa das primeiras ruas do bairro. Não era bem um café, daí que lhe chame coffee-shop, visto que lhe dá o tom pretensioso e deslumbrado necessário. Era um lugar confortável onde nos separávamos temporariamente do desalento da chuva e do vento. Do lado direito, uma mesa com duas poltronas onde dois tipos bem parecidos se encontravam sentados. Um deles lia uma revista, o outro parecia atarefado com as definições do telemóvel e ia trocando impressões com o dono do negócio, numa voz muito bem colocada que enchia a sala de uma certa familiaridade, apesar do excessivo tom cosmopolita, de quem está no seu domínio e o resto é senão paisagem. Talvez estivéssemos ali a interromper aquele momento de alguma privacidade com silêncio, ou pelo menos ficou essa sensação, quando a música assumiu o protagonismo do espaço. O tema que soava nas colunas não era difícil de reconhecer, naquele ano de 2006, pelo sucesso que garantiu ao ambiente destes lugares da urbanidade, criando dentro do ruído e da urgência da cidade um breve espaço de languidez e doce melancolia. Nos anos seguintes, o som chill-out desse Love can damage your health, dos Télépopmusik, perder-se-ia no meio de outras novidades. Daquele fim de tarde de chuva, no chamado coração de Lisboa, sobrou a urgência e perdeu-se a estética - o único sítio onde gostamos de regressar.

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até prova em contrário

por jorge c., em 22.10.14

Não será justo chamar-lhe memória inventada. Será, antes, uma memória transformada pelas conversas, pelos olhos dos outros e pela experiência subjectiva e romantizada pelo tempo. Temos mais saudades do que as coisas significavam para nós do que das coisas em si mesmas. A memória é, também, um exercício egoístico, possessivo e, por isso, persistente e irredutível até prova em contrário.  

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sobre a memória

por jorge c., em 25.09.14

A memória é, talvez, uma das maiores provas de humildade. Ela é um sinal da nossa atenção, da nossa vontade de apreender, de aprender e de reconhecer. Recordo-me, por exemplo, da origem da maioria dos meus discos - quem me mostrou ou onde comprei. Recordo as pessoas e o seu entusiasmo (e como também o comprei). A discussão sobre arrogância e humildade não pode ser feita sem a ideia do reconhecimento. No fundo, é como se não houvesse dialéctica. Já ninguém ganha discussões por causa da dialéctica. A dialéctica está morta.

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à memória de federico garcia lorca

por jorge c., em 19.08.14

Pelas duas da manhã, em ponto, talvez. Nenhuma hora é certa para morrer num teatro sem paredes, praça sem arena ou dignidade. Federico caía morto, matado, como um pedaço de nada. Não houve combate, nem sequer desafio. Os disparos sobre o poeta que viu Nova Iorque e que admirou a paixão e a coragem dos homens, da Andaluzia para o mundo, no meio dos silêncios, foram a toada trágica, a descida do pano derradeiro. As palavras ficaram escritas pelas ruas das cidades como uma tatuagem. Toma esta valsa de boca fechada. Toma esta luz de coração inquieto. Somos o teu peito, Federico, aquilo que resta da humanidade.

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as férias

por jorge c., em 18.08.14

Houve um tempo em que a vila migrava para a costa oeste, durante o estio. De São Pedro de Moel à Ericeira, com especial incidência nas praias de Santa Cruz, as férias de verão eram um prolongamento da convivência, numa outra parte. Quando o mar estava mais violento, e a neblina ocupava os areais - o que acontecia com frequência -, os dias eram animados com sardinhadas, jogos de rua e passeios serenos que devolviam o oxigénio aos corpos exaustos. O tempo parava e as obrigações ficavam suspensas nas secretárias. As crianças tinham espaço para as pequenas aventuras e o cheiro dos pinhais misturava-se com o da água oxigenada e do mercúrio-cromo, no fim do dia. A liberdade inocente das férias culminava nas noites frescas, entre cartadas e conversas agasalhadas nas esplanadas. Naquela época, poucos iam para o Algarve dos pobres e muito poucos gozavam o dos ricos. A costa alentejana era ainda território por desbravar e o estrangeiro, um delírio. A oferta seduziu a procura e, por mais que se negue, destruiu o nosso retiro com prédios e condomínios de lixo. Passámos de veraneantes a clientes. Consumimos férias. Consumimo-nos. 

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o mito

por jorge c., em 11.08.14

Terá sido por esta hora a que escrevo que a notícia chegou através da televisão. Talvez naquele 11 de Agosto de 74 o vento corresse com a mesma intensidade pelos becos da cidade, como agora, uivando a dor irreparável da perda do toureiro. Talvez a lua estivesse cheia de luz, iluminando as lezírias e os montes, e o Tejo a reflectisse para a eternidade. É como aquele tango de Piazzolla - Adios Nonino - que mistura as pulsações e nos deixa numa angústia sem fim. Há, ainda hoje, um silêncio pouco estival para nos ajudar a sentir a presença de Falcão pelas ruas, como se andasse por aí com um sorriso fraterno a fazer de conta que era um de nós; como se aproveitasse a luminosidade da lua cheia para lidar um novilho no tentadero dos Palhas, criando a ilusão aos demais de que estariam numa Barcelona que já não existe a assistir ao seu triunfo imortal, fixo, imóvel, destemido. O encontro dele com os que, como eu, nunca o viram, é a poesia necessária para imortalizar a glória e alimentar os espíritos.

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lá longe

por jorge c., em 28.07.14

Sob a névoa que cobre toda a lezíria, esta manhã, nem um sinal da memória. Nem pela cidade, nem por todas as vilas do baixo-Tejo, nem em lado nenhum - a memória de uma guerra que nos levou as gentes, que nos mudou os dias, o caminho e os limites. Há 100 anos dar-se-ia o mote para aquilo que, mais tarde, chamariam de expedição de um grupo de pobres rapazes que mal se haviam deslumbrado com os poucos prazeres de uma vida. Tudo tão pouco, faz agora tanto tempo. E nós ainda a fazer de conta que não é nada connosco.

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esquecimento global

por jorge c., em 24.07.14

Entre o tédio e o vento, recebo uma mensagem a informar-me sobre um programa dedicado à música popular portuguesa. No seguimento de uma troca de impressões sobre o documentário, notou-se a tendência para uma temática geográfica, à época. Foi talvez um tempo em que se quis fazer de Portugal um destino à la Saint Tropez. Eram cenários idílicos, de estações amenas, termas e cuidados; uma vida saudável rumo à eterna serenidade e, quem sabe, ao amor providencial. Lembrei-me daquela canção do João Maria Tudela que costumava cantar, por graça, quando era miúdo - Lua de Mel em Portugal. Lembrei-me desses lugares por onde passei, num tempo em que as férias de três meses enchiam os salões de glamour e familiaridade, como se Gatsby não tivesse rasgado a Lei Seca. Era um Portugal de virtudes serôdias, que nascia da estética asilada destas pousadas, pensões e estalagens, que ficou congelado com aqueles lugares ou a degradar-se longe da vista e do coração. Na Lezíria, a memória do Gado Bravo - lugar cimeiro do meu imaginário ribatejano - foi arruinada pela passagem do tempo e da vontade, como que condenando o western português ao olvido derradeiro, numa morte tão lenta quanto o tempo permitir. O charme dos lugares é agora uma paisagem triste na memória dos loucos.

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