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por jorge c., em 15.10.19

As raparigas já lhes chamam os pichas-murchas. Não é original. É verdade que a falta de noção é uma das suas mais notáveis características. É uma espécie de falta de propriocepção, mas do ridículo. Houve um tempo em que tiveram relevância e dinheiro. Depois, quando o capitalismo subsituiu a elite a que pertenciam por outra mais adaptável aos famigerados novos desafios, que surgem sempre com intervalos de dez anos para dar a ilusão da inesgotabilidade da modernidade, refugiaram-se nas diferentes formas da decadência e da vergonha. Agora, uns divorciados, outros viúvos, sentam-se na esplanada a fingir que estão a aproveitar a reforma quando, na verdade, estão apenas sozinhos. 

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luta de classes

por jorge c., em 16.12.16

Obcecada com a sua própria urbanidade, interrompe a conversa muito desdenhosa com um acontecimento cultural na província. Esclarecida sobre a dimensão do evento, não deixa escapar um ar surpreendido, ao mesmo tempo desconfiado. Fora de Lisboa? Deve ser péssimo! O ar blasé mantém-se ao longo do jantar, com mais um ou dois comentários despectivos, entre relatos de idas a espectáculos interessantíssimos, onde estava toda a gente, e observações de profundidade duvidosa sobre a vida social de um ou outro autor. Ergo o punho e grito por revolução. É preciso esganar os lisboetas. E a burguesia, claro. 

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as férias de sardinha

por jorge c., em 26.07.16

- Quinze dias de férias! - exclamou num alívio tal que, ao recostar-se na cadeira, tombou, batendo com a cabeça no aparador da sala e derrubando uma jarra que lhes fora oferecida por uma prima afastada no dia do casamento. Pronto, estavam as férias feitas. Resignou-se com o facto de nas próximas duas semanas as suas manhãs começarem invariavelmente com a lembrança da tragédia que foi ter quebrado aquela jarra, de como é um irresponsável que não valoriza as coisas, de como a prima lhe era querida, apesar das distâncias, e lhes comprou aquela obra de arte por considerar que tinha tudo a ver com ela e que aquela era a única forma que tinha de se recordar da família que havia abandonado para se dedicar a um marido incompetente, inútil e desinteressante. Nem tudo era mentira.

Quando Sardinha casou, tinha começado a trabalhar na propaganda médica havia pouco mais de um ano, com direito a carro e a cartão de crédito para os almoços e jantares de negócios que acabariam por nunca acontecer devido à sua timidez, apesar de o chefe acreditar que tudo aquilo se devia mais ao facto de ele ser uma pessoa absolutamente desinteressante, inoportuna e, por consequência, inútil em qualquer empresa. Talvez tenha sido por isso que mudou de ramo, nunca afastando a convicção de que teria talento para as vendas. E com isto tudo já eram doze anos nos seguros. Muita gente passou por ali; entravam, saíam, e ele sempre lá, sempre a trabalhar; férias, nem vê-las. Chegava, por isso, a altura de gozar quinze dias, que seriam agora assombrados pela tragédia da jarra.

Portanto, se descontasse os telefonemas que iria receber, o massacre diário da jarra, a jardinagem e as compras, estaríamos a falar de um valor líquido de três dias de férias. Não desmoralizou. Talvez um bocadinho. Talvez tenha ficado a pensar que se fosse rico é que eles iam ver o que eram férias, na Polinésia Francesa, como um cliente que lhe contou que na Polinésia Francesa até uma tipa com um abanico a dar-a-dar para suavizar o calor havia; a água, transparente; nunca precisaria de se mexer para fazer o que quer que fosse excepto, claro, se a tipa do abanico quisesse brincar aos colonizadores, que era algo que também se podia arranjar. Quando um tipo tem dinheiro, tudo se arranja. E em vez de passar umas férias inteiras a podar arbustos, a aparar relva e a recolher pinhas e folhas de loureiro, passaria todas as tardes como se fossem aqueles sunsets onde os ricalhaços aparecem a beber gins e outras bebidas cujo nome agora não se recordava mas que o cunhado, que era um purista, sabia de trás para a frente. Ele é que lhe dava os conselhos: "Aquilo é uma maravilha. Mas não são aqueles patés manhosos do supermercado. É foie gras a sério, francês. O da Rússia também é muito bom. E bebes um ginzinho a seguir, com zimbro, pimenta rosa e hortelã. Vais ver como não queres outra coisa." Há gente que sabe viver, pensava. O cunhado, por exemplo. Admirava-o tanto que era raro não começar as frases com a formulação "o meu cunhado", o que depois, pelo excesso, acabaria por ser motivo de comentários menos simpáticos dos colegas. 

Foi precisamente o cunhado que os convenceu a arrendar uma casa na Malveira para passarem as férias e os fins-de-semana. Claro que fins-de-semana era para esquecer. É a bola do puto, a ginástica da miúda, o negócio que não dorme nem tira férias, o Benfica... enfim, ficava difícil. Quando lá iam, eram dois dias a limpar a casa e o jardim e na segunda-feira ninguém ia trabalhar por ele. Por isso, quinze dias de férias vinham mesmo a calhar para que na sua cabeça se justificasse um arrendamento anual de uma casa na Malveira. 

Três dias depois de terem chegado, já só faltava limpar o anexo, recolher as folhas caídas e cortar a relva. Mais dois dias e estava tudo pronto. Para agilizar o processo, decidiu substituir os sacos onde colocava as folhas secas de loureiro por um bidão grande onde as colocaria todas. Como acabou por ficar um bocado pesado, lembrou-se que se queimasse aquilo tudo ficava o problema resolvido. 

Quando a polícia chegou por volta das 16h00, o fogo alastrava já pela parte de trás da casa. Meteram-no no carro e levaram-no para a esquadra. Pelas 18h00, os bombeiros já tinham a situação controlada. Convencido de que ainda estava no papel de vítima, Sardinha desabafou com o polícia que, felizmente, o seguro cobria aquelas coisas, que não fosse ele um dos maiores especialistas de seguros do país de certeza que já lhe tinham estragado a vida, que a empresa é muito experiente nestes assuntos...

Foi já nos calabouços da PJ que se lembrou da jarra. Na verdade, desde que havia chegado à Malveira a mulher não tinha tocado no assunto. No fundo, até estavam a ser umas belíssimas férias. 

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rede social

por jorge c., em 26.08.15

Célia. É assim o nome da mulher que, convencida da sua insubmissa sagacidade, se recusa a ir em modas. Não come sushi, não bebe gin, ou por outra, bebia-o quando não era moda e qualquer um servia - grandes tosgas nos bons tempos dessa zona que agora também está na moda. O jogging e o gourmet, então, parecem-lhe uma perfeita patetice, mas o que ainda a irrita mais são as ondas de indignação, solidariedade e evocação de figuras públicas que vão morrendo, porque só depois da sua morte se lembram delas. Estas e outras observações têm sido partilhadas na sua página pessoal, numa rede social onde mantém, mais coisa menos coisa, perto de 650 amigos, e contam neste momento com mais de 300 anuências e comentários solidários. Não obstante a sua consciente e frequente participação neste universo, Célia considera ridícula a preferência pela utilização destas ferramentas modernas em detrimento do convívio social e, apesar da sua frontalidade, honestidade, sinceridade e bonomia, reflectidas nas mais variadas citações anónimas e imagens de paz e amor, não evita por vezes mensagens subliminares aos seus colegas de trabalho que "passam o dia nisto". Ela bem os vê. Quando chega a hora de sair, vai para casa, prepara o jantar e senta-se no sofá onde permanece até se deitar, esperando a primeira insónia da noite.

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o homem normal

por jorge c., em 19.06.15

Dário Fagundes vive do outro lado da cidade e atravessa todos os dias a grande avenida para chegar ao seu destino. São, neste momento, 15 horas e 33 minutos, numa vida tremendamente aborrecida. Nada mais há a dizer sobre o dia de Dário Fagundes que, dentro de duas horas, abandonará este edifício, regressará a casa e ali permanecerá até às 21 horas, altura em que levará o saco do lixo ao contentor. Aos fins-de-semana, Dário Fagundes come batatas fritas e pouco mais há a apontar, a não ser que não é infeliz, apenas existe sem qualquer interesse e só não acaba com isto porque ninguém lhe garante que do outro lado não será pior.

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fadistices

por jorge c., em 22.04.15

A primeira vez que o vi foi numa casa de fados ali na Artilharia 1. Parecia meio deslocado quando chegou, um desgraçado que vinha cantar o fado. Sentou-se ao pé de mim a fumar e pouco falou. Tinha um ar humilde e, de certo modo, subserviente. Confesso que me fez pena. Dava ares de quem trazia fome e que, talvez depois de cantar 3 ou 4 fados, lhe pagariam qualquer coisinha para se aguentar mais 2 ou 3 dias. Ontem vi-o numa capa de revista, com ar de velho do mar, sabido e confiante.. Pousei a revista, sorri para mim mesmo e lembrei-me de uma dessas canções de borda d'água que o tornaram famoso:

 

"Põe o negro xaile

solto nos teus ombros.

Quero ouvir cantar.

Porque em minhas mãos

Há uma guitarra

Pronta p'ra trinar."

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jovens empresários

por jorge c., em 23.07.14

Dizem que é "olho para o negócio", este instinto de adaptação às circuntâncias que vai adequando aos tempos. Andou no esquema dos telemóveis; foi sócio de um cyber café chamado Espaço 2000; promoveu festas dos anos 80 nos anos 2000, já o café futurista tinha sido passado a um jovem casal de 40 anos, através de uma ajuda preciosa da Associação Nacional de Jovens Empresários, transformando-se no proeminente snack-bar Matias; vendeu produtos de beleza e dietistas. De há uns anos para cá, graças a uma internet muito diferente do seu tempo do cyber café, começou a ler autores americanos que falavam de novas práticas e sugeriam abordagens inovadoras. É a auto-ajuda da gestão e do marketing. Tem assistido a conferências através de vídeos disponíveis online e está a desenvolver um novo projecto, como se diz agora. É uma plataforma de serviços que agrega clientes e empreendedores. A sua linguagem super-positiva não anda longe dos anúncios de tele-vendas que consumiram a televisão nos anos 90. Gosta de exteriorizar a sua opinião sobre os sacrifícios e a necessidade de trabalhar, ao invés de andar para aí armado em doutor. Tem 44 anos e é profundamente infeliz.

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o homem de sorriso amarelo

por jorge c., em 04.07.14

Ainda que evitando que o ressentimento se apoderasse de mim, reparei no homem de sorriso amarelo. Uma voz doce sobre a praça e uma expressão cintilante. Nem tudo o que luz é oiro, dir-se-ia. Uns, mais distraídos, cederam e entregaram-se carentes nos braços sonsos que tecem a sua rede caprichosa. O homem de sorriso amarelo não come por ter fome mas, sim, por gula.

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