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utilitarismo social

por jorge c., em 02.11.21

Valorizamos muito o simbolismo das palavras e seguimos as suas tendências. Dizemos partilhar, experiência, liberdade (adoramos, adoramos, adoramos). Mas, continuamos a confundi-las com outras ferramentas sociais. Por exemplo, já quase não sabemos distinguir entre partilha e vaidade; já não sabemos discernir a vaidade da partilha quando alguém nos seduz ou quando tentamos seduzir. Imagino a solidão e o sofrimento de quem só conhece o símbolo das palavras e a utilidade dos gestos. 

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Fui alertado para o facto de a tarefa ser impossível, logo após ter anunciado o meu desejo de a executar. Não vais conseguir - diziam -, há demasiadas distrações. E se as havia... Sempre que me preparava para a iniciar, novo ruído, nova interrupção, um constrangimento qualquer. Mesas que mudavam de sítio, uma intervenção elétrica, um teste, uma festa. "Estás a ver? Não vais conseguir." Quando pedi sossego, o tom indignado e os olhares reprovadores reagiram. Depois, o desconforto hostil concentrou-se na própria tarefa. Já não era o facto de ser impossível, era ser má e era eu estar obcecado por ela. Às distrações chamavam urgências e à tarefa o trabalho que devíamos estar a fazer, mas que não podemos por causa de todas as urgências. Finalmente, para que pudesse executar a tarefa, chegou à mesa um conjunto de documentos para preencher e que se acumularam com o tempo. Um dia, também eu esquecerei a tarefa e, sempre que alguém a tentar desenterrar, serei o constrangimento obediente.

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por jorge c., em 02.01.19

Começámos o ano a cantar e a tocar, numa grande festa em casa da Ana Luísa, que nos recebeu com generosidade e carinho. E, embora não seja um entusiasta do ritual de passagem de ano, é agradável ver o sorriso de estranhos que se cumprimentam, como um sinal de esperança, de que é possível ser amável com o semelhante. Na mesa com o banquete já não cabia mais nada e havia vinho para mais duas festas. Havia um certo cheiro no ar, de ócio. Não há nada melhor na vida do que o cheiro do ócio. 

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Sempre que descubro músicos mais obscuros, sinto uma imensa injustiça e apetece-me desatar a fazer telefonemas e obrigar as pessoas a viver aquilo comigo, naquele momento, com aquela pele e aquele nervo todo que vinham das guitarras do Ricardo Quinteira, das vozes da Sara Alhinho e da Aixa Figini e do cada vez mais invulgar sax soprano do Diogo Picão. Tenho demasiada dificuldade em me manter como um mero espectador das coisas que acontecem assim, na vida. Parece-me sempre algo egoísta.

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É tudo muito bonito, mas ainda só passaram umas vinte e quatro horas e já discuti no trânsito. Fico sempre fascinado com a capacidade que as pessoas têm de constranger a vida dos outros e dar cabo deste otimismo a que nos vamos obrigando suavemente no início do ano. Tinha resolvido discutir menos com o mundo. Lá se foram os planos. 

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por jorge c., em 18.12.18

O inverno, este ano, está a aparecer aos bocados, como num puzzle. Hoje, chegou a chuva, à hora do almoço. Quando cheguei ao gabinete ainda não estava cá ninguém. Por isso, fiquei a observar a rua da janela: os carros com os faróis ligados, iluminando a chuva oblíqua, atravessando lentamente a rua, quase a medo; as pessoas a fugir como que de uma catástrofe; tudo o resto - as árvores, o passeio, os carros estacionados, as cadeiras e as mesas da esplanada do Aracuá - imóvel e indiferente. 

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Creio que a melancolia da chuva está relacionada com a reconstrução da imagem em movimento. Quando observamos a rua, sem a informação do som, usamos a imaginação para preencher o que está em falta e, então, transformamos a ideia da imagem em algo íntimo, como se fosse uma criação nossa. E, manipulada, a ideia torna-se confortável mas, ainda assim, apenas uma memória. Com o som, sem a imagem em movimento, a mesma coisa. É a memória dos sentidos, mesmo que seja por nós ficcionada ou sugerida por outro elemento externo: a literatura, o cinema, a música. 

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por jorge c., em 22.05.18

Hoje de manhã recebi a notícia da morte do JB. Teve uma vida dramática e o final não foi menos trágico. Afogou-se num rancor que o levou para longe de todos e perdeu as capacidades essenciais. A notícia chegou-me por sms, que é uma forma ingrata de nos apanhar desprevenidos. Mais tarde, uma notificação do Público no telemóvel anunciava a morte de Júlio Pomar. E é assim que agora ficamos a saber da morte, por notificação. 

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Para evitar as declarações sentimentalistas duvidosas na televisão, fui ler alguns excertos de Textos e Variações. Pomar tinha uma escrita muito semelhante à pintura: um traço fino e poético, uma procura do real, um olhar sobre o mundo e sobre a cultura do mundo. Fechei os olhos e relembrei o desenho que ocupa toda a parede interior do Museu do Neo-Realismo, onde se ergue, imponente, um camponês que nos obriga a olhá-lo de baixo para cima. Em mais nenhum ponto do museu conseguimos ver a imagem integral, só cá de baixo. Mas não o devemos apenas à curadoria. Devemo-lo, sobretudo, a essa ideia que tantas vezes debateu com Lima de Freitas, Cunhal ou Redol de que a arte também tem de representar as preocupações reais do homem comum e não, apenas, as aspirações metafísicas do artista. 

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Há uma certa espiritualidade nas coincidências. Hoje, enquanto ajudava MS a montar a sua instalação da próxima exposição, deparei-me com uma impressão onde estva inscrito o nome de Pomar e de um dos seus livros. Creio que ao lado também se via, sobreposta, uma das suas pinturas. As coincidências têm a capacidade de nos demonstrar como a relação que temos com as coisas consegue ser tão singular.

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por jorge c., em 09.05.18

A comunidade sente-se mais feliz em festa. O inverno foi longo e, com ele, os mal-entendidos, os desentendimentos, a reclusão, o ressentimento. Ao primeiro sinal de festa, a vila respira de alívio, sorri, diz bom dia, brinda, embriaga-se. À noite, a tradicional pancadaria. Foi um bom regresso.

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Aproxima-se mais uma mudança nas exposições temporárias do Museu. É preciso desmontar, devolver, arrumar, para que logo se desenhe um novo prolongamento da sua vida. Sinto sempre uma imensa melancolia no dia da desmontagem. A efemeridade das exposições obriga-nos a aceitar o irrepetível. Digamos que é como um fim de dia. 

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Regressei à banda sonora de "I Am Sam", que devolve o espanto poético à música dos Beatles. A poesia ganha sempre novas vidas quando as palavras recuperam a força ou quando a ganham pela primeira vez. Vem-me à memória, assim de repente, a forma ainda bem mais hesitante com que Ben Harper diz "I think, er, no, I mean, er, yes/ But it's all wrong/ That is I think I disagree". Mas é melhor ter cuidado com estas heterodoxias. Os dias não estão de feição à discórdia. 

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por jorge c., em 03.05.18

Há dias deceparam duas árvores - amoreiras, creio - num dos largos mais antigos da vila. Os meus conterrâneos lá mostraram o seu desagrado, reivindicando o seu património, evocando dias felizes. Hoje, passei por lá e o cenário é crucinante. Habituei-me, contudo, às mudanças, porque o tempo e a distância são crueis com a memória da paisagem. Quando nos ausentamos por longas temporadas, tudo se transforma: no homem outrora altivo vemos agora os sinais da decadência do corpo; na casa que habitámos e onde nunca mais entraremos, vivem estranhos; amigos que deixaram de se falar; a calçada do caminho para a escola é substituída por cimento; os cafés fecharam ou mudaram de proprietário; as velhas casas de piso térreo deram lugar a novos prédios; as árvores morreram. Por vezes, basta uma ausência de dias para que tudo mude, sem nos pedir licença. É a vida própria da civilização a imitar a natureza. E, embora o ressentimento seja legítimo, de nada vale guardarmos rancor à inevitável transformação no mundo, pois dela também somos cúmplices.

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por jorge c., em 01.05.18

Estou hesitante em considerar uma abordagem passivo-agressiva de um ativista anti-tauromaquia como ofensa ou ingenuidade. Dizem-me os amigos que é uma coisa da idade, mas não consigo desligar o botão da ofensa. E não falo da ofensa simples, mas de uma ofensa generalizada à liberdade dos indivíduos. Estive quase a pregar-lhe dois bananos nos cornos. Vontade, essa, não me faltou. Mas contive-me, com o estoicismo que preside a esta minha nova consciência pacifista, à qual não posso deixar de capitular. Houve tempos, claro, em que não hesitaria em pregar no estafermo arrogante dois valentes socos, aos quais não teria reação. Seria simples: uma chapada de mão aberta na fonte, seguida de um gancho, com o propósito de lhe partir a cana do nariz ou, caso falhasse, rebentar-lhe o queixo. Não o fiz. Virei costas e segui, em marcha solene pelo Dia do Trabalhador. Mas por que raio há-de esta gente aproveitar dias de celebração para reivindicar o seu ódio aos outros? Com tantos inimigos que temos, escolhem sempre os mais desprotegidos para condenar. Enfim, é o drama habitual da cultura dos outros. De resto, foi um bom dia. 

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os dias comuns

por jorge c., em 30.04.18

Tenho pensado em deixar de fumar, mas depois de ler uma referência de Zizek sobre A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, fiquei irritado com esses juízos de coragem e liberdade e prometi não voltar ao assunto, convicto que estou das limitações a que me sujeito por existir. Aliás, os meus dramas sobre liberdade começam logo pelo facto de querer estar noutro lugar, que não este. Por exemplo, decidi que quero viver no Maine, mais precisamente em New England, mas sei que não passa de um sonho. Não vou deixar de dormir por causa disso e, para já, admito a possibilidade de ficar aqui para sempre (um horror!).

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Ontem estivemos em casa do T.N.. A R. foi mordida pelo cão logo à chegada e toda a nossa confiança no mundo ficou mais cautelosa. Isto levou-me a pensar na relação que temos com os bichos. Estamos demasiado convencidos de que a domesticação é um instrumento absoluto de controlo ou de manipulação e não de relação de dependência ou de poder, como, verdadeiramente, o é. 

Entretanto, usámos o grelhador pela primeira vez, este ano. Voltei a ficar nostálgico, o que é uma maçada. Tenho memórias daquela vila, o que significa que há uma ligação entre essa época e hoje que foi quebrada. E se calhar a nostalgia é isso mesmo: a incapacidade que tivemos de manter a vida como ela era.

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Reparei que deixei de ser convidado para aniversários ou outros eventos sociais. A vida na borda d'água afastou-me. Mas fico a pensar se deixei, de facto, de ser convidado, ou se essas festas deixaram de se realizar. Seja o problema meu ou dos outros, é sempre caso de preocupação. Alguma coisa não está como seria desejável.

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Tenho andado a ler os diários de José Gomes Ferreira, Dias Comuns, que me têm custado uma fortuna. Fiquei espantado com o preço dos livros, este ano. Não creio que seja possível cultivar o acesso à cultura com estes valores. Dezassete euros, o último volume. Também uma coletânea de poemas do Philip Larkin, da Faber & Faber, custou-me mais de quinze euros. Preciso de roupa e assim é difícil. Por isso, decidi voltar a escrever no registo de diário, para que depois possa ler qualquer coisa de graça. Não sei se me tolerarei como crítico, mas é ao que estamos sujeitos.

 

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à espera

por jorge c., em 17.01.17

A partir de agora, fazemos o luto no Natal. Os anos vão passando, a nossa gente vai morrendo. A tragédia é inevitável. Ficaremos sozinhos, enrolados nos copos da consoada, a agonizar na casa de estranhos. E o advento, agora, será outro. 

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espião acidental

por jorge c., em 01.09.16

O início nunca é claro. Desta vez, chegava a um terreno com uma casa semi-abandonada. Sabia da morte de um amigo do meu pai. De seguida, um outro era assassinado e depois um terceiro. A polícia chega e admito reconhecer um padrão. Talvez saiba quem é o assassino.

Por esta altura surge uma ex-namorada que passeia serena com uma capa vermelha de burel. Os olhos verdes condizem com as cores do outono. Conversamos um pouco e fazemos as pazes de desencontros demasiado passados. Nada mais.

Apanho um autocarro melancólico que atravessa o bairro da minha infância e recebo uma chamada. Um 96 que não se encontra registado.

- Estou?

Uma voz ensonada do outro lado responde como se eu a conseguisse reconhecer:

- Então a malta diz que tu andas todo maluco e passas a vida a escrever cenas estranhas?

- Qual malta?

- O pessoal da faculdade.

- Eh pá, já tentei explicar mil vezes... Mas quem é que está a falar?

Insisto na pergunta várias vezes e explico que perdi os contactos. Lanço uns nomes de amigos mais próximos com quem o contacto tem sido cada vez mais escasso. Do outro lado, o tipo liga a aparelhagem e ouve-se Welcome to the Jungle. "Está lá, está lá" e nada. Depois Night Train. "Estou? Estou?"

- É o Axl, meu.

- Axl? Mas tu estás cá?

Era o Axl Rose, amigo de longa data a dar a boa nova. Lá fui ter ao bar dele, naquele mesmo bairro, lembrando um pouco o Cais na Ribeira do Porto. Ao balcão, fomos pondo a conversa em dia. Desafiou-me para o ajudar aí com uns negócios. Nada de especial. Mas, primeiro, tinha de confirmar que ia à passagem de ano. Oitenta euros - duas pessoas. Confirmei-me imediatamente e disse que ia falar com a tal ex-namorada confiante de que haveria ali uma aproximação. Desabafei ali um bocadinho com o meu amigalhaço. Saí do bar e pelo caminho segurava no telefone hesitando na sms.

Sem saber porquê encontro uns tipos mais velhotes acompanhados por um sujeito com ar de carteirista. Ficamos os dois a conversar sobre língua portuguesa mas entretanto passa a mulher do Presidente da Câmara e eu tenho de me ir embora para me encontrar de novo com o Axl.

Estamos três no elevador. O terceiro já não sei quem é, mas de repente fui eu que o levei até lá. O contacto era meu. Vamos para a Penthouse. Pelo que me apercebo, envolve putas. Não me faltava mais nada. Aquilo já não me parecia uma coisa assim tão simples como ele a pintara. Lá chegados, avançamos pelo corredor. Três jovens semi-nuas abrem três portas diferentes e sorriem com um ar atrevidote. De repente, tiros de metralhadora por todo o lado, o cliente é assassinado por uns tipos que o Axl revela serem russos. Quando este amigo da onça me contou que lhes devia dinheiro e tinha de fazer favores, o despertador começou a tocar. Como sabia que eu conhecia toda a gente... E pronto, o gato começou a miar e acordei definitivamente.

Há alguns anos que não me lembrava tão nitidamente de um sonho.

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o spleen da borda d'água

por jorge c., em 15.07.16

O cenário das ruas tem mudado. O mundo que chegou à pátria orgulhosamente só trouxe consigo outros hábitos. Cruzei-me, há dias, com uma mulher que caminhava enquanto fazia uma vídeo-chamada. Nas mercearias que são, agora, propriedade de mulheres e homens vindos de toda a parte, vemos e ouvimos as cores desses lugares distantes a saírem dos dispositivos, e com eles as reações, umas vezes alegres, outras apreensivas, destes novos vizinhos. É então que reparo em dois homens - portugueses, suponho - de telefone em riste, apontando para uma parede da cidade. A imagem, ainda que estranha, deverá ser, em breve, uma constante. A partir de hoje, muitos serão os diletantes desse jogo que encontra pequenos bonecos nos sítios mais improváveis. Chamam-lhes Pokémon. Poderia lá a história da Borda d'Água ficar indiferente.

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das revelações

por jorge c., em 21.06.16

Não perguntarei o que é a Verdade mas, antes, o que fazer quando a Verdade mudar. Quando chegar o momento em que o que era a Verdade deixa de o ser, como receber a revelação: aceitá-la com entusiasmo, aceitá-la com resignação ou reagir consciente de que a Verdade anterior é, agora, mentira?

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a ficção do mundo

por jorge c., em 25.05.16

Vou lendo, por aí, histórias de gente que se entrenha nas paredes do mundo. Ficções que acontecem à realidade. Penso nelas com uma inveja carinhosa. Queria escrevê-las, inventá-las, mas elas existem e foram contadas. Agora só me restam estas linhas trôpegas. 

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everything must go

por jorge c., em 20.05.16

Puristas, românticos de quaisquer construções, sempre os houve. Inventaram o nacionalismo, o autêntico, o verdadeiro, o original. O puro, lá está. Arrastam consigo, através da humanidade, os limites da imaginação. São os escravos do ressentimento, os fiéis guardiões da velha caverna. Não lhes devemos absolutamente nada. 

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cobranças difíceis

por jorge c., em 04.05.16

Não há nada que inquiete mais a existência do que a incerteza sobre o que os outros pensam de nós. Podemos fugir, inventar uma retórica de auto-confiança, defender o individualismo ou entrar numa personagem que nos pareça mais conveniente. A verdade é que todos nos preocupamos. O que pensarão eles sobre mim? A dúvida é existencial. Toda a dúvida é existencial. É ela que me assalta quando vejo que os amigos não me visitam, que não têm curiosidade sobre o mundo que me rodeia, que não manifestam interesse pela minha cultura. Ao mesmo tempo, os amigos mostram-se incomodados pela a minha ausência. "Estás diferente", dizem. Eu, que aqui me encontro arredado do mundo, sem teatro, cinema e poesia, com pouca música e um difícil acesso a tantas outras coisas; eu, que vivo com pouco sem me queixar, apesar deste queixume; eu, que abandonei a casa e as gentes; eu, que sinto a falta de todas as coisas, como uma nostalgia perpétua. A que se deverá tal crueldade dos amigos? Isso, à necessidade que têm de ser gostados. Todos têm. Temos. Não me cobrem. 

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estranhos em casa

por jorge c., em 10.12.15

A abnegação também é uma vanglória. Desapegamo-nos das coisas não como uma demonstração de indiferença, mas sim de coragem. Enquanto virtude, a abenegação dar-nos-á dissabores, com o tempo. Todos esses lugares que deixámos para trás serão ocupados por outros. Por mais que acreditemos que os lugares não são de ninguém, há um dia em que regressamos e observamos os outros a comportarem-se como proprietários desses lugares que quisemos livres. E então sentimo-nos deslocados, estranhos em casa. Uma nostalgia ressentida consome-nos o espírito e põe a virtude da abnegação em causa. Já nem a luz ou a intimidade nos pertencem. No jardim da Cordoaria. No Twitter. E já não é apenas a sensação de sermos estrangeiros. É a sensação de não sermos bem-vindos.

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opus 77

por jorge c., em 11.10.15

Haydn a caminho da Vala, pelo meio dos ciprestes e da indústria pesada, num desses dias tépidos de outono. Mesmo sem se ver o rio, percebe-se pelas figuras que vão passando a pé pela rua da estrada, como bem lhe chamou Álvaro Domingues, que é domingo na borda d'água. Um grupo de ciclistas atravessa o cruzamento do Carregado e um outro, de peregrinos, segue a bom ritmo pelo caminho mariano. Na estrada para a Azambuja, uma carroça de ciganos passa em frente ao centro comercial e um Mercedes com uma família tradicional entra penitentemente no parque de estacionamento. Parou de chover e Haydn continua a tocar para todos. Não há nada mais plural e universal do que um quarteto de cordas num domingo na borda d'água.

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na feira da borda d'água

por jorge c., em 09.10.15

De todos os despertares, o cheiro do café das velhas logo pela manhã é o mais estimulante. E quando a temperatura lá fora baixa e as paredes da casa arrefecem, sentem-se os ossos mais rijos, saltando-se da cama como uma mola em direcção ao dia. "Come qualquer coisa, rapaz!" Não como nada, não há tempo. E agora a rua é uma rampa de neve, a toda a velocidade, sem hesitações, como se a calçada não existisse e a descida fosse um mergulho perpétuo de um esquiador num movimento contínuo e magnífico. Estala o primeiro foguete, o coração dispara e as pernas ganham uma força extraordinária. Quase a esbarrar na tronqueira, vejo o maioral real passar na frente, seguindo-se um outro cuja vara aponta ao primeiro toiro e mantém tudo encabrestado. Os miúdos gritam "toiro! toiro!" e os homens que os esperavam no meio da rua precipitam-se para o resto das tronqueiras e para trás dos carros que ficaram esquecidos na noite anterior. O cheiro de Outubro fica ali embrulhado na humidade da areia e uma melancolia parva permanece nos espíritos. Nas ruas de Vila Franca, esperam-se toiros como quem espera pela felicidade eterna. 

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toxicidade

por jorge c., em 28.08.15

O verão desparece pela manhã. Um nevoeiro abafado invade o quarto, a intimidade dos lençóis ainda quentes e o reflexo de um rapaz e de uma rapariga sonolentos no espelho. O cheiro do monóxido de carbono ameaça o dia. Entre a cidade e o céu, paredes de betão e um ruído exasperante de embalar, como num disco dos Massive Attack.

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os dias do tédio

por jorge c., em 11.08.15

Entre as três e as quatro da tarde passo a mais fastidiosa das horas do dia e com indulgência ignoro as banalidades e o ruído. Dou lugar ao tédio e à inquietação e assim se passa um pedaço sério do dia. Em casa, esperam-me os livros que são, por estes dias, as únicas férias que tenho. 

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out of the office

por jorge c., em 03.08.15

A mensagem automática dos ausentes em agosto é clara: lamentamos, mas a vida foi adiada para setembro. Ligo e peço para falar com alguém que me possa, pelo menos, dizer se as coisas estão a andar. Nada feito. "Pois, o doutor não está, terá de esperar que ele regresse." Mas não há aí ninguém? Fico impaciente. Parece que a informação está no computador do doutor, que ele só volta em setembro porque as pessoas também têm que ir de férias - é da lei -, e que o assunto deve estar a andar, mas por agora não podem adiantar mais nada, eu que tenha paciência. A vida que tenha paciência, não há ninguém no escritório. Estão todos ali, de papo para o ar, na internet.

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quotidiano

por jorge c., em 30.07.15

Restam três cigarros no maço. Um maço por dia, nunca é bem um dia de manhã à noite. Um maço, 24 horas. Três cigarros e ainda faltam tantas horas. O melhor é comprar o maço para o dia que aí vem. O tempo em cigarros como uma ampulheta de tabaco. Falta ainda o longo fim do dia. O melhor é comprar mais coisas. Faço a lista: pão, manteiga, ovos, detergente, papel higiénico, comida para o gato, talvez um gelado. Não compro água. Eu e o gato bebemos água da torneira. Nunca nos aconteceu nada. O tempo vai passando em tabaco. Faltam agora dois cigarros e está calor. Faltam ainda os outros vinte e assim sucessivamente. Vinte unidades de tédio. Os dias a esfumarem-se para nada.

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meteo

por jorge c., em 19.06.15

Está calor, todos sabemos, não é novidade que em Junho há calor, muito calor, mas Março parece ter sido ontem, com as reclamações sobre a chuva e o vento e o frio, queixumes, previsões, conversa de corredor entre os colegas na hora do café, que é para não se falar da desgraça que para aí anda, são coisas tão recentes que agora ninguém se atreve a manifestar grande incómodo com o estado do tempo, este calor, tanto calor, que já nem essas conversas alimenta, essas previsões - lá está - do boletim metereológico para a semana que vem, ah! que na quarta-feira já está melhor e no domingo afinal diz que 'tá chuva, é do anticiclone, dizem eles, e lá vai o tempo passando, mas agora ninguém quer mais melhorias do que isto, deixa estar que assim está bem, não vá o diabo tecê-las e a gente depois nem respirar consegue, uma banhoca é que era, na praia, e o fim-de-semana a chegar, as praias à pinha, o rapaz pequeno que quer ir ver não sei o quê, se der tempo, que a casa não se limpa sozinha, para o ano compra-se o ar-condicionado, se der, que já não se aguenta isto e ainda agora começou, mas deixem lá isso, é do tempo. 

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comunicando

por jorge c., em 08.06.15

Entre significado e significante, há palavras que pairam na angústia das intenções, das interpretações caprichosas dos falantes. E a língua perde-se em explicações. E a comunicação parece um conflito armado. Na guerra das palavras, acabamos por sufocar em silêncio.

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ruído

por jorge c., em 20.05.15

Quando o assunto do dia assim o obriga, explode um vulcão de palavras que se agrupam urgentemente, devastando o silêncio e a gramática elementar. Os dedos precipitam-se pelas teclas, num excesso de linguagem, e sente-se o medo de que algo fique por dizer. Já nem as frases respiram e o raciocínio, turvo, é uma mera pretensão. Palavras atrás de palavras. Repetem-se. Redundam. Reinventam significantes e significados. E a ideia apaga-se porque não restam intervalos para respirar. E então, nada.

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as amantes de césar

por jorge c., em 12.05.15

É mais fácil o compromisso com o erro nas cidades pequenas. Por aqui, ninguém gosta de assumir o desconhecimento e todos, à sua maneira, são submetidos ao medo daquilo que julgam ser a ignorância, atirando-se deliciosamente para o abismo da mesma. Entre a estética e a ética, escolhem a primeira sem titubear. Na borda d'água, mais vale parecer do que ser.

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um problema de abstracção

por jorge c., em 08.04.15

Estou a sofrer as consequências do Realismo, como quem perde faculdades pelos excessos da vida. As horas passam e a ideia do poema fica a moer no rancor e o poema não floresce, maior do que a vulgaridade, maior do que o ressentimento. Não há imagem para a angústia que não seja somente melancolia banal. Não há nada que transcenda a melancolia e revele a angústia com um rasgo de tragédia. 

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o dia da morte de herberto helder

por jorge c., em 24.03.15

Ficámos órfãos de poetas. Restam-nos os livros e os versos latentes que são como uma adição da influência que se perpetua no caminho da nuca para a língua. Perdemos a certeza do corpo presente que guarda a dignidade do mundo - as barbas, os gatos, os olhos das coisas intangíveis, isolados do excesso de tangibilidade de todas as outras coisas. Ficamos agora à superfície, a boiar sobre os abismos, ignorando as suas profundezas e o fogo que nasce dentro da Terra. Enterramo-nos vivos.

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primavera de destroços

por jorge c., em 18.03.15

A flor rebentou nas ameixoeiras nos primeiros dias de calor, como que debutando a Primavera. Mas logo regressou o frio e o céu cobriu-se de uma sombra tão inoportunamente cinzenta que os dias ficaram logo mais curtos e os ossos de novo gelados. À flor da pele tantas outras nuvens, quando por dentro nada floriu, só esta imensa angústia em mangas de camisa, sem um casaquinho pelas costas, exposta assim ao Inverno que ainda tinha algo a acrescentar. Já não vale a pena fazer planos.

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história dos dias tristes

por jorge c., em 05.03.15

Na Borda d'Àgua a realidade está deprimida. Há umas décadas, o rio ainda dava para a sobrevivência, a Lezíria servia de pasto para o gado bravo de uma dezena de ganadarias e, à cidade, chamavam-lhe a Sevilha Portuguesa. As saudades desse tempo inventam memórias tão conservadoras quanto o pessimismo dos seus cultores. Tirando o primeiro cheiro da Primavera, não restam muitos motivos para a felicidade quotidiana enquanto durar o Inverno. 

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vai passar

por jorge c., em 16.02.15

Pelas duas da tarde o sol escondera-se por detrás das nuvens, deixando o frio à solta pelas ruas vazias, no meio do comércio encerrado para férias de Carnaval ou à espera de nova gerência, num silêncio apocalíptico. Enfiadas em fatiotas com um brilho sintético e áspero, as crianças seguem animadas, vestidas de ícone da moda ou com trajes consagrados pelo tempo, subvertendo a autenticidade do disfarce com meias de lã, sapatos de fivela e camisolas interiores para as proteger do frio de Fevereiro. Seguem para o desfile que se vai compondo timidamente com meia dúzia de atrelados puxados por tractores, transportando raparigas semi-nuas que dançam arrepiadas numa folia calculada, numa irreverência forçada pelo som desadequado de um Trio Eléctrico, sem uma alegoria suficiente que lhes devolva o espírito. Vai passar o Carnaval dos conformados, dos sem imaginação, daqueles a quem tiraram o brilho original, atirados para uma eterna quarta-feira de cinzas. 

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frame

por jorge c., em 28.01.15

Dois homens moderados, parados numa longa avenida, conversam sob um céu de azul plácido. Os prédios reflectem a luz tépida do sol do crepúsculo. É o fim de janeiro e dois homens moderados conversam entusiasmados sob o olhar apressado dos carros. Nos prédios da longa avenida não se vê ninguém, só a luz tépida do sol do crespúsculo a reflectir nas janelas, como se fosse uma manhã de junho. 

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para uma ideia de europa

por jorge c., em 21.01.15

Parado ao lado da Ermida de Alcamé, reparo na Lezíria, plana e plena. É para ela que olho, como um elemento único de encanto e paz. Mas a Lezíria é um conjunto de parcelas de gente diferente, território partilhado ou dividido. Há as gentes do arroz, há as gentes dos cavalos, as dos toiros ou as do gado manso. Dentro dessa diversidade, resiste a ideia da Lezíria, livre, que reserva para si o direito sobre os seus próprios valores. E por isso a vemos imensa e lhe chamamos Lezíria e não a propriedade deste ou daquele. É a essa resistência que chamamos Lezíria - a sua natureza. 

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entre o céu e a terra

por jorge c., em 15.12.14

Enquanto o prédio dorme, vou pensando no céu e na terra. Emociona-me o sono dos outros, ou as suas insónias de pranto, desespero, de amor, felicidade e serenidade. Talvez nestes andares todos não esteja ninguém a pensar no céu e na terra e estejam, sim, a tentar sobreviver aos seus caprichos. É como estar com os pés no céu a observar os outros com os pés na terra. Depois de uma ligeira inveja, começo a assumir a condição e deixo-me adormecer no infinito.

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Acordo de manhã e vejo-te no espelho. Não vais para novo. Reparo numa ligeira dificuldade em erguer o corpo, o que será o resultado de uma breve vida de excessos. Não és assim tão velho. Tens peso a mais, perdeste o cabelo mas os olhos ainda brilham com orgulho. Talvez ainda te lembres de nós, quando esqueces as rugas das expressões e o passar do tempo pela pele. Sei que te interrogas todos os dias sobre a figura reflectida, mas garanto-te que aquele és tu e não há nada a fazer. Conforma-te com as consequências da adultícia. Estás sozinho e a melancolia da quarta década é, agora, a dos amigos e dos momentos em que poderias ter mudado o rumo. Pensas na tua consciência como uma virtude e sorris com humildade, como quem fez o possível. Gostas da minha memória e admiras as ruas como elas eram. Por isso, és um conservador. Cultivaste um espírito lúcido e lógico e, não raras vezes, ris-te das irritações e fúrias com assuntos menores. Por vezes, julgas-te um rapazinho e isso ajuda-te a conservar o brilho nos olhos, o sentimento visceral de justiça, de liberdade, de igualdade e de esperança. Acreditas euforicamente no amor e amas incondicionalmente os teus pares, cujos defeitos e virtudes identificas com o desprendimento de quem não tem paciência para fazer julgamentos. Sabes, porém, que a proximidade física é efémera. E apesar de revelares a tua intimidade, és intolerante com a invasão do teu espaço que é uma montanha isolada e que cresce no infinito. Hoje estás especialmente triste. Vês os amigos a desaparecer, o mundo à tua volta a andar aos círculos e ninguém parece saber o que fazer. É por isso que desististe de desfazer a barba, como se diz no Porto, e viver o possível na Borda d'Água.

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uma legenda para a.

por jorge c., em 17.11.14

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Os cabelos cresceram e continuarão a crescer. Agora que já sorri, este é um Outono de esperança. É como uma força do céu azul nas nuvens cinzentas, a cor no preto e branco, o horizonte a rasgar a vida para uma outra vida, nova. A arte do fotógrafo é perpetuar as circunstâncias; é ver a poesia a passar para evitar o caos.

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da identidade

por jorge c., em 13.10.14

A identidade e o sentimento de pertença são os elementos definidores de uma região. As circunscrições são, por isso, uma invenção administrativa do homem e da sua incapacidade crónica para gerir e distribuir os recursos. Um povo faz-se, sobretudo, da sua partilha cultural. 

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revolver

por jorge c., em 07.10.14

Quando o mundo acabar podem apagar as luzes mas, por favor, deixem um disco dos Beatles a tocar.

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melomanias

por jorge c., em 03.10.14

Resiste, ainda, ao motor do progresso, uma pequena barbearia, na Rua Direita. O proprietário é um homem que conheço desde muito novo - era o barbeiro do meu avô e do meu amigo Soeiro. Trata-se de uma pequena loja, um edifício isolado, com uma decoração modesta, ignorada pelas marcas de cosméticos. Pelas paredes permanecem uns posters do Águia, um clube que há mais de 50 anos deu origem ao União, e algumas fotografias dos clientes que se tornaram amigos. A clientela resume-se a septuagenários debilitados e a uma rapaziada que, tal como eu, não consegue conceber o seu desaparecimento. Quando ontem lá entrei, o homem estava a terminar um serviço com o velho Campainhas. Recebeu-me, como sempre, a perguntar pelos toiros da última corrida de Setembro mas, não pude deixar de estranhar o som raro que saía do rádio pousado na prateleira junto da porta das traseiras. O Zé Careca, como é conhecido, apesar da sua farta cabeleira branca, tem por costume ouvir a Rádio Amália e, por isso, habituamo-nos ao corte do pêlo ao som de um fadinho maroto. Porém, desta vez, a música era outra. Não demorei a conhecer a voz de Nat King Cole e, confesso, também não me surpreendi por ser ele o escolhido. Cantava as canções latinas, com aquele sotaque ternurento, e o Zé Careca ia trautiando uma frase ou outra. Foi então que me disse "O Nat King Cole". "Reparei" - respondi -  "e até estranhei não estar nos fados". "Não... às vezes, ao fim da tarde ponho este. Comprei-o no outro dia. Tive em disco, há muitos anos. Agora comprei o CD." A conversa prosseguiu animada. Lembrei-lhe que era Dia Internacional da Música. Falámos do Júlio Iglesias, do Roberto Carlos, do Tony de Matos e, um pouco a medo, mencionei Nelson Ned, que ele aceitou entusiasmado. Contou-me dos seus hábitos, de como se deita a ouvir a rádio, com os auriculares porque a mulher "não gosta de música"; de como acorda e a primeira coisa que faz é ligar o aparelho; de como ao Domingo se senta no sofá e ali fica a ouvir os discos que foi coleccionando ao longo dos seus dias. Disse-o com a solenidade de quem guarda um castelo e isso emocionou-me. Acompanhou-me à porta e despediu-se de mim. Quando eu já seguia o meu caminho, chamou-me e disse a boa voz, num tom irónico: "Hoje também é o dia do idoso". 

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outubro

por jorge c., em 01.10.14

Dou por mim a escrever sobre os meses do ano como se fossem a única coisa que me liga à terra. Agora vem Outubro, com um sol pouco recomendável e desadequado que nos impede de ver a neblina a cobrir os salgueiros da borda d'água. Outubro, o mês da poesia, nasce no dia da música. Penso nisto para não pensar em desgraças. Já nos chega o ressentimento dos outros. 

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harvest

por jorge c., em 10.09.14

Quando as primeiras chuvas da colheita chegam e perfumam o campo de outono, a vida volta ao sítio e os blues normalizam-se na lezíria e no rio. Esta é a época do cheiro da água nas outras matérias. Na borda d'auga preparam-se os tachos para as sopas, a dobrada e o cozido. Já se vê o melão na estrada e os bonés regressam responsáveis às cabeças dos amadores. Sim, ainda falta, mas o Ribatejo precisa do outono para respirar e trajar-se a rigor.

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os heróis de bogotá

por jorge c., em 03.09.14

Em Bogotá, há um grupo de novilheiros instalado nas portas da Praça de Touros de Santamaria, há quatro semanas, em greve de fome. Durante o dia de ontem, dois deles coseram a boca porquanto o seu protesto não fosse suficiente. Dizem estes jovens profissionais, vindos de diversas escolas taurinas, que o Alcaide da capital colombiana, extravasando as suas competências constitucionais ao proibir os espectáculos da tauromaquia, não está apenas a subtrair-lhes o trabalho, a sua cultura e a identidade mas, sobretudo, a liberdade. E que conceito tão extraordinário que é este da liberdade. Porque a liberdade para desempenhar uma profissão ou uma arte de risco, de confronto directo com a morte, não é compatível com o modelo pós-moderno que nos quer impedir de assistir ao cenário derradeiro e proteger-nos do real. Julgo ter sido Paul Valéry a alertar para esta tendência gradual do último século e meio. Na Europa, o berço da civilização, a narrativa contra a tauromaquia é outra e há uma preponderância dos direitos dos animais sobre o direito dos homens. O nosso espanto poderia surgir por a primeira preocupação não ser a vida humana. No entanto, habituados ao desprezo pelo outro (este ano comemoramos o centenário da Grande Guerra de 1914 - 1945), não me habituo, ainda assim, ao desprezo pela liberdade. A nossa e a dos outros. É por isso que os Novilheiros de Bogotá são heróis do nosso tempo; por acreditarem que vale a pena lutar pela liberdade - a deles e a nossa.

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breve ode setembrista

por jorge c., em 01.09.14

Por mera conveniência, o fim de Agosto confunde-se com o fim do verão. Talvez os dias já estejam mais curtos, é verdade. Talvez as noites, mais frescas, nos embalem lentamente para o outono, numa dissimulação bem intencionada. Este é o mês invisível ou de passo apressado, a luz finita do estio, o pôr-do-sol do ano inteiro. As coisas do mundo amadurecem ou, talvez, recuperem apenas a lucidez. Teremos tempo para a melancolia quando as folhas começarem a cair.

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requiem por tomás

por jorge c., em 25.08.14

Quando as pessoas estão vivas, a nossa esperança de as encontrar, ou de que partilhem connosco as suas singularidades, é legítima. A admiração que lhes entregamos também nasce da sua generosidade. Porém, o culto da personalidade e o mistério têm a medida do alcance dos indivíduos. Olhos que não vêem, coração que não sente, como sói dizer-se. A ti, José Tomás, vejo-te como um fantasma do passado. Para te admirar os movimentos sublimes, recorro aos mesmos meios que uso para ver Rafael de Paula, Antoñete, Camino ou Joselito. És um toureiro indiferido. Como posso admirar um toureiro do meu tempo, se não me dá a oportunidade plena de o fazer, colocando a fasquia na capacidade económica do aficionado e na raridade do evento? Como posso eu considerar melhor ou pior um toureiro de uma época, se a sua presença é tanta como a de Manolete ou Cordobez? Não há nenhum matador de toiros que conheça a glória sem público. Não há glória se o espada não se expõe e não aceita o desafio, percorrendo o mundo. Só é toureiro quem toureia. Por isso, aqui me despeço de ti, José Tomás. Não me faz mais sentido defender-te num tempo quando estás, para mim, noutro tempo. Despeço-me da emoção falsamente imediata de uma contemplação extemporânea. Só o passado admite as lendas. O presente é dos vivos. 

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as férias

por jorge c., em 18.08.14

Houve um tempo em que a vila migrava para a costa oeste, durante o estio. De São Pedro de Moel à Ericeira, com especial incidência nas praias de Santa Cruz, as férias de verão eram um prolongamento da convivência, numa outra parte. Quando o mar estava mais violento, e a neblina ocupava os areais - o que acontecia com frequência -, os dias eram animados com sardinhadas, jogos de rua e passeios serenos que devolviam o oxigénio aos corpos exaustos. O tempo parava e as obrigações ficavam suspensas nas secretárias. As crianças tinham espaço para as pequenas aventuras e o cheiro dos pinhais misturava-se com o da água oxigenada e do mercúrio-cromo, no fim do dia. A liberdade inocente das férias culminava nas noites frescas, entre cartadas e conversas agasalhadas nas esplanadas. Naquela época, poucos iam para o Algarve dos pobres e muito poucos gozavam o dos ricos. A costa alentejana era ainda território por desbravar e o estrangeiro, um delírio. A oferta seduziu a procura e, por mais que se negue, destruiu o nosso retiro com prédios e condomínios de lixo. Passámos de veraneantes a clientes. Consumimos férias. Consumimo-nos. 

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o sábado

por jorge c., em 09.08.14

Aproveitamos mal os sábados. Tomamo-los por dias indicados para a realização de tarefas lúdicas ou domésticas. No verão, corremos para a praia, arrastando os corpos através da densa cortina de calor. Cansamo-nos e, no dia seguinte, estamos fatigados. Corre, neste sábado, uma brisa que vai sustentando melifluamente a cortina da janela do quarto, para depois varrer o calor do corpo, como uma carícia. Ao sentir esse sopro, lembrei-me das cenas de praia no Estrangeiro, de Camus, que, não obstante as circunstâncias, me deu muitos sábados semelhantes.

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recolher obrigatório

por jorge c., em 30.07.14

Talvez por o sol se pôr atrás dos montes, o dia e a noite misturam-se numa subtileza invulgar e as tonalidades da lezíria harmonizam com a luz rarefeita e com o primeiro sopro do vento. Quando o vento pára, a borda d'água é invadida por um exército de insectos, enviado dos arrozais para se vingar do esquecimento.

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do tédio

por jorge c., em 24.07.14

Sobre alguns dos temas mais discutidos, por estes dias, não tenho qualquer opinião. Tenho desviado os olhos das parangonas dos jornais, ao passar o quiosque, e mal ligo a televisão. Mas, não foi a realidade que me levou ao tédio. Foi, antes, o excesso das opiniões que a consumiram. 

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água

por jorge c., em 22.07.14

Há um vídeo de Hermeto Pascoal, da Música da Lagoa, no qual o brasileiro e O Grupo, a banhos num pequeno lago rodeado de quedas de água, tocam uma modinha que parece nascida da natureza, entre folhas e borboletas. É nessa frescura que tenho pensado quando, ao chegar a casa, no fim do dia, o corpo mal respira, poluído pelo excesso de civilização. Quando o calor sufoca as margens do Tejo, imagino a água noutros lugares, como um oásis. 

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