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notas da realidade ficcionada na lezíria
De todos os despertares, o cheiro do café das velhas logo pela manhã é o mais estimulante. E quando a temperatura lá fora baixa e as paredes da casa arrefecem, sentem-se os ossos mais rijos, saltando-se da cama como uma mola em direcção ao dia. "Come qualquer coisa, rapaz!" Não como nada, não há tempo. E agora a rua é uma rampa de neve, a toda a velocidade, sem hesitações, como se a calçada não existisse e a descida fosse um mergulho perpétuo de um esquiador num movimento contínuo e magnífico. Estala o primeiro foguete, o coração dispara e as pernas ganham uma força extraordinária. Quase a esbarrar na tronqueira, vejo o maioral real passar na frente, seguindo-se um outro cuja vara aponta ao primeiro toiro e mantém tudo encabrestado. Os miúdos gritam "toiro! toiro!" e os homens que os esperavam no meio da rua precipitam-se para o resto das tronqueiras e para trás dos carros que ficaram esquecidos na noite anterior. O cheiro de Outubro fica ali embrulhado na humidade da areia e uma melancolia parva permanece nos espíritos. Nas ruas de Vila Franca, esperam-se toiros como quem espera pela felicidade eterna.
Em Bogotá, há um grupo de novilheiros instalado nas portas da Praça de Touros de Santamaria, há quatro semanas, em greve de fome. Durante o dia de ontem, dois deles coseram a boca porquanto o seu protesto não fosse suficiente. Dizem estes jovens profissionais, vindos de diversas escolas taurinas, que o Alcaide da capital colombiana, extravasando as suas competências constitucionais ao proibir os espectáculos da tauromaquia, não está apenas a subtrair-lhes o trabalho, a sua cultura e a identidade mas, sobretudo, a liberdade. E que conceito tão extraordinário que é este da liberdade. Porque a liberdade para desempenhar uma profissão ou uma arte de risco, de confronto directo com a morte, não é compatível com o modelo pós-moderno que nos quer impedir de assistir ao cenário derradeiro e proteger-nos do real. Julgo ter sido Paul Valéry a alertar para esta tendência gradual do último século e meio. Na Europa, o berço da civilização, a narrativa contra a tauromaquia é outra e há uma preponderância dos direitos dos animais sobre o direito dos homens. O nosso espanto poderia surgir por a primeira preocupação não ser a vida humana. No entanto, habituados ao desprezo pelo outro (este ano comemoramos o centenário da Grande Guerra de 1914 - 1945), não me habituo, ainda assim, ao desprezo pela liberdade. A nossa e a dos outros. É por isso que os Novilheiros de Bogotá são heróis do nosso tempo; por acreditarem que vale a pena lutar pela liberdade - a deles e a nossa.