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notas da realidade ficcionada na lezíria
Sonhei acordado com a Foz do Douro, com o passeio longo da Montevideu à Avenida Brasil, a nortada ligeira, o sol atlântico e o mar. Há um ritmo do mar na Praia da Luz que me recorda a Ilha de Cantaloupe, onde tudo sabe a fresco e o calor convoca uma preguiça civilizada.
Haydn a caminho da Vala, pelo meio dos ciprestes e da indústria pesada, num desses dias tépidos de outono. Mesmo sem se ver o rio, percebe-se pelas figuras que vão passando a pé pela rua da estrada, como bem lhe chamou Álvaro Domingues, que é domingo na borda d'água. Um grupo de ciclistas atravessa o cruzamento do Carregado e um outro, de peregrinos, segue a bom ritmo pelo caminho mariano. Na estrada para a Azambuja, uma carroça de ciganos passa em frente ao centro comercial e um Mercedes com uma família tradicional entra penitentemente no parque de estacionamento. Parou de chover e Haydn continua a tocar para todos. Não há nada mais plural e universal do que um quarteto de cordas num domingo na borda d'água.
Era Domingo e jogava o Benfica. Comecei o dia a comer torradas com queijo de cabra, e uma compota de framboesa bastante vulgar, e a ouvir baladas do Dexter Gordon, em frente aos montes. A sala estava escura e acolhedora, mas não havia chá na dispensa, pelo que decidi continuar sozinho. Pensei ligar-lhe, talvez para dançar um pouco ou para olhar os montes em conjunto a ouvir as baladas do Dexter Gordon. Peguei no casaco e no cachecol, sem fazer a barba, e saí em direcção à avenida. Pensei na Galiza e nos seus bares onde, ao Domingo, debaixo de uma luz tépida, se ouvem as baladas do Dexter Gordon e se dança com olhos de amor serenos.
Tenho saudades de sítios onde nunca estive. Talvez este não seja um sentimento original, porquanto nem todos os sonhos são surpreendentes. Ainda assim, alimentam-nos a esperança de regressar em corpo onde estivemos em espírito: Wigtown, Blackpool, South Shields, Fraserburgh, Cleggan ou Clifden.
À saída do prédio, a vizinha queixa-se que o tempo está abafado. Cá de cima vê-se o Tejo a evaporar como uma bruma vespertina de Outubro, as margens transpiradas, os salgueiros de cor entediada. Estou a ouvir o Avalon e a pensar em Barcelona. Há um ano que não vejo Barcelona. E então lembro-me dos encontros com Bolaño no Raval e a vontade de ser eu a dizer as suas palavras em cada passo, em cada rua. Dizer as palavras todas e o calor a subir no corpo como uma vontade de libertar o aperto no peito, esse aperto das cores dos prédios de Barcelona, tão diferentes do meu prédio suburbano. Fui procurar Vila-Matas, como há um ano o procurei em todas as ruas que me havia dado a conhecer e repito Avalon como ele repetiu Bela Lugosi is dead. É nestes dias que gostava de estar acompanhado pelos dois, sem medir os passos, caminhando e vagueando pelas ruas que irradiam para praças de gente, ignorando ainda os cabelos cor de seara da rapariga do cais, pensando em Chet Baker a pensar na sua arte, no meio da humidade e das cores dos prédios de Barcelona - a universidade desconhecida.