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notas da realidade ficcionada na lezíria
Sayid voltou a perturbar-me o sono. Desta vez apareceu noutro tempo, rodeado por uma dessas felicidades raras da vida. Depois disso, lembro-me apenas de o ver deitado numa camarata, acompanhado de umas dezenas de outros homens, todos vestidos de igual. Ouvia-se música e o som inequívoco de camiões. Ouviu-se também um disparo e um corpo apareceu caído junto de uma cerca. Acordei sem saber se a minha personagem teria morrido. A história de Sayid havia terminado, mas agora surgia algo novo, já sem os outros, num outro cenário. Um sonho tão estranho como aterrador. O despertador ainda não tinha tocado. Talvez aqueles quinze minutos restantes pudessem ter sido fundamentais. Quinze minutos é uma vida nos sonhos. Levantei-me e saí para apanhar o avião para Lisboa, com o possível corpo de Sayid na mente e o trago amargo da cerveja da noite anterior a entupir-me toda a zona respiratória. Voltei a adormecer durante o voo mas julgo não ter sonhado mais. No táxi, num francês enferrujado, o motorista confessa estar triste com o que se passa na Europa. O tema propaga-se por toda a parte como um grande terramoto. É a favor. A favor? Sim, a favor. Há quem seja contra. Contra o quê? Toda esta história de refugiados e migrantes e tragédias. Migrações trágicas. Sabe bem o que isso é. Em 75 veio para Portugal para fugir da morte certa. Não era um regresso, mas antes uma vida nova, um outro cenário. Também havia quem fosse contra. Emocionou-se e forçou-me ao silêncio. A luz de Lisboa preenchia o espaço com a compaixão possível, enquanto o taxímetro marcava a passagem do tempo numa luta clássica entre a melancolia e a urgência do fim do dia. Lembrei-me de Julio Cortázar e da sua breve história porteña. Às vezes o mundo cabe todo numa pequena viagem nos transportes públicos.